Controle da Administração Pública no Brasil: um breve resumo do tema

17 de julho de 2018

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Marcos Augusto Perez – Doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo

1  Introdução: a importância do controle da Administração Pública e seus precedentes históricos no Brasil     

É clássica a lição de Hauriou,1 segundo a qual recolocar o exercício do poder em seus limites é função essencial do direito administrativo. Essa lição ganha importância crescente na atualidade, uma vez que interessa tanto aos cidadãos, aos atores econômicos, como à sociedade coletivamente organizada, que as autoridades públicas não se excedam, não se desviem e, ao mesmo tempo, não se omitam no exercício de nenhum de seus poderes.

A Administração Pública contemporânea tem tarefas muito extensas, variadas, especializadas e complexas. Os pais fundadores do direito administrativo seguramente não imaginaram que o Estado chegaria ao grau de intervenção social e econômica que hoje se presencia. Seja por força da necessidade de uma intensa ação afirmativa para a efetivação dos direitos fundamentais, seja como fruto de uma sociedade (ou da existência de movimentos sociais) cada vez mais reivindicadora ou de atuações estatais,2 seja, por fim, pela necessidade de constantemente intervir no domínio econômico para corrigir as falhas de mercado, para executar medidas contra graves e recorrentes crises econômicas ou para ajudar as pessoas sem recursos ou condições econômicas de sobrevivência digna.3

A verdade é que, tendo que assumir funções que vão da saúde às telecomunicações; da educação aos portos ou aeroportos; da vigilância sanitária à defesa nacional; da previdência social à intervenção urbanística, entre muitas e muitas outras que, ainda que não sejam prestacionais, importam em regular ou normatizar condutas dos múltiplos agentes econômicos para eliminar falhas e assimetrias de mercado ou para impor condutas de interesse público que o mercado por si só não consegue realizar, torna-se impossível que o administrador público seja um carimbador autômato, um mero verificador de fatos concretos para aplicação do direito posto ou a longa manus da vontade do legislador e disso decorre a crescente importância do controle.

Além disso é necessário verificar que os instrumentos de controle da Administração Pública relacionam-se com o fenômeno da democracia ou, em outras palavras, é necessário reconhecer que o aperfeiçoamento das instituições democráticas influencia diretamente no amadurecimento dos sistemas de controle da Administração Pública. Seguramente não interessa a governos autoritários ou a ditaduras que a Administração Pública seja controlada, senão como forma de torná-la mais centralizada. É na democracia que se fertilizam os diferentes instrumentos de controle sobre a Administração, como salvaguarda contra o arbítrio e o capricho dos governantes.

É justamente por isso que, no Brasil, o período que segue a promulgação da Constituição de 1988 (agora com pouco mais de 25 anos) é justamente aquele em que os mecanismos de controle da Administração passam a ganhar importância material, não somente formal, e a lentamente se efetivar.

2  O controle externo e o controle interno

Para uma descrição sumária do sistema de controle da Administração Pública no Brasil, basta dizer que a Administração se submete tanto a um controle interno, quanto a um controle externo.

Compreende-se por controle interno ou poder de autocontrole o dever de a Administração Pública anular seus próprios atos, quando praticados em desconformidade com o direito. Cabem nessa categoria os instrumentos de controle da Administração centralizada sobre autarquias, fundações e empresas estatais.

O controle externo, por seu turno, corresponde tanto ao controle do Poder Legislativo sobre a Administração, como ao controle jurisdicional, observando-se que no Brasil não se adota o sistema de jurisdição administrativa, mas, sim, a unicidade de jurisdição, inspirada na Constituição norte-americana. Segundo o art. 5º, XXXV, da Constituição Federal Brasileira: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Os principais mecanismos de controle interno são o recurso administrativo; a supervisão ministerial; a representação a órgãos internos de correição e os processos decisórios.

O recurso administrativo é a concretização do direito constitucional de petição, por meio do recurso, no curso de um processo administrativo ou não, o interessado pede a revisão do ato praticado pela administração, a revisão da decisão administrativa.

Chama-se supervisão ministerial o controle de ofício realizado pelos ministérios sobre entidades da administração descentralizada: autarquias, fundações governamentais e empresas estatais.

Nos últimos anos, proliferou a criação de órgãos de correição interna, geralmente chamados controladorias. As controladorias realizam auditorias e controles de ofício, mas também recebem e processam representações feitas por qualquer interessado contra funcionários e autoridades públicas.

Como meio de controle prévio e interno da atividade administrativa, a Lei nº 9.784/1999 estabeleceu regras de processo administrativo. Por essa lei, tanto atos administrativos que afetam o interesse de indivíduos, como atos que afetam interesses coletivos ou difusos – os atos normativos, por exemplo – devem ser precedidos de processo decisório. As regras da Lei nº 9.784/1999 estabelecem hipóteses em que mecanismos como audiências e consultas públicas podem ser realizados. Os processos decisórios voltam-se a melhorar o modo de produção das decisões administrativas, tornando-as mais razoáveis, mais motivadas e, por conseguinte, mais estáveis.

O controle externo realizado pelo Legislativo, por sua vez, tem como principais instrumentos: (1) as autorizações prévias (como no caso da autorização para a produção de energia por meio de centrais nucleares); (2) a sustação de regulamentos editados pela Administração (inclusive por agências reguladoras) por exorbitarem os poderes que lhes foram delegados por lei; (3) a possibilidade de o Legislativo convocar ministros para prestar esclarecimentos; (4) as comissões parlamentares de inquérito, as quais detêm poderes de investigação equiparados aos das autoridades judiciais; (5) o impeachment, processo por meio do qual se visa condenar o presidente da república, governadores e prefeitos por crime de responsabilidade (expediente típico dos países em que vigora o sistema presidencialista de governo); e, enfim, (6) o controle orçamentário e financeiro que é realizado pelo Legislativo com o auxílio de outro importante órgão de controle externo da Administração: o Tribunal de Contas.

Finalmente, temos o amplo controle jurisdicional. O controle se dá, nesse caso, por meio do ajuizamento de ações perante os distintos órgãos judiciários por aqueles que a legislação vai considerar legitimados para tanto.

A Constituição Federal regula em termos genéricos boa parte dessas ações, as quais chamamos de remédios constitucionais, a saber: (1) o mandado de segurança, voltado a amparar direito líquido e certo da pessoa diretamente prejudicada contra o excesso ou o desvio de poder das autoridades administrativas; (2) a ação popular, que pode ser ajuizada por qualquer cidadão contra ato lesivo ao patrimônio público e que atente contra a legalidade, a moralidade, o meio ambiente ou o patrimônio histórico, cultural ou artístico; (3) a ação direta de inconstitucionalidade e a arguição de descumprimento de preceito fundamental, ações distintas que realizam o controle concentrado de constitucionalidade e podem ser ajuizadas pelo Presidente da República; pela Mesa do Senado Federal; pela Mesa da Câmara dos Deputados; pela Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; pelo Governador de Estado ou do Distrito Federal; pelo Procurador-Geral da República; pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; partido político com representação no Congresso Nacional ou confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional; (4) o habeas data volta-se a proteger a esfera íntima dos indivíduos contra: a) usos abusivos de registros de dados pessoais coletados por meios fraudulentos, desleais ou ilícitos; b) introdução nesses registros de dados sensíveis (assim chamados os de origem racial, opinião política, filosófica ou religiosa, filiação partidária e sindical, orientação sexual, etc.); c) conservação de dados falsos ou com fins diversos dos autorizados em lei; (5) o mandado de injunção pode ser utilizado sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania; e, por fim, o remédio atualmente mais comum, (6) a ação civil pública de improbidade, voltada a combater atos administrativos praticados em desconformidade com o direito, inclusive com os princípios gerais de direito administrativo e que levem ao enriquecimento ilícito de agentes públicos ou causem lesão ao erário. A ação é geralmente titulada pelo Ministério Público.

3  Amplitude material do controle

Observe-se que materialmente o controle, seja interno ou externo, realiza a verificação dos vícios dos atos administrativos, seja quanto a sua competência, forma ou objeto, como também no que se relaciona à finalidade e aos motivos. O controle verifica a constitucionalidade, legalidade e compatibilidade dos atos com os princípios gerais do direito administrativo. Verificam-se a economicidade, a razoabilidade e a proporcionalidade dos atos, tanto de atos concretos que afetam o interesse de uma pessoa ou de uma coletividade determinada, como atos gerais que afetam número indeterminado de pessoas. Verificam-se regulamentos, políticas e planos. Não há, portanto, matéria que não se submeta ou que escape aos distintos controles.

4  A Lei Anticorrupção e sua aplicação

Mais recentemente, em agosto de 2013, foi sancionada a Lei nº 12.846, também chamada Lei Anticorrupção, tendo como objetivo, como denuncia o seu título, constranger a prática de corrupção e o pagamento ilegal de propinas para agentes públicos.

A lei se inspira no FCPA norte-americano e na Comunicação de 2011 da Comissão Europeia (entre outras normativas europeias), frutos de um novo consenso global baseado na Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção e formado a partir da compreensão de que a corrupção prejudica gravemente a economia e a sociedade no seu conjunto, enfraquecendo a democracia, a justiça social e o Estado de Direito.

A lei, regulamentada pelo Decreto nº 8.420, de 2015, induz empresas que mantenham contratação com o Poder Público a realizar programas de integridade corporativa (compliance), de modo a tentar abolir práticas comerciais de favorecimento em troca do pagamento de propinas.

Segundo a lei, compete à CGU (Controladoria Geral da União) processar administrativamente as empresas flagradas em prática de corrupção, aplicando-lhes multas que podem chegar a 20% (vinte por cento) do faturamento bruto da empresa ou três vezes o valor da vantagem auferida, o que for maior. A mesma CGU tem a competência de firmar acordos de leniência com as empresas envolvidas em atos de corrupção que: (1) admitam sua participação em atividades ilícitas e (2) cooperem com as investigações e ofereçam informações sobre o caso.

Há atualmente muitos casos em apuração na CGU por força do envolvimento em prática de corrupção de uma aparentemente ampla rede de empresas, prestadoras de serviços da Petrobras. Trata-se de um teste importante para novo sistema de controle que já apresenta, na prática, virtudes e defeitos.

As virtudes ficam claras pelo fato de empresas de diversos setores econômicos passarem a buscar uma melhor governança e a implantarem sistemas de integridade corporativa a fim de se precaverem contra a prática da corrupção.

Os defeitos do novo sistema ficam também claros, pois há certa morosidade nos processos (especialmente quando correm em paralelo a processos criminais), associada à insegurança gerada pelo fato de a lei não associar a leniência às sanções de ordem penal.4 Daí a empresa que resolve realizar um acordo de leniência correr o risco de ter seus dirigentes processados penalmente, o que acaba por não incentivar os acordos de leniência. Na prática, CGU e Ministério Público (titular da ação penal) e, por vezes, também o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica: agência de defesa da concorrência) tentam interagir para que os acordos se façam com renúncia ou modulação das sanções penais.

5  Conclusão: um sistema amplo, mas ainda em construção

A conclusão desta breve exposição sobre o sistema brasileiro de controle da Administração Pública é a seguinte:

–  O Brasil possui um sistema de controle amplo, apto a defender os administrados e a própria Administração contra atos ilegais e arbitrários praticados pelas autoridades públicas, sistema consentâneo com o primado da democracia e do Estado de Direito.

–  O sistema abrange vários instrumentos que podem ser divididos entre os controles internos e externos (estes realizados pelos poderes Legislativo e Judiciário).

–  O sistema realiza o controle de legalidade em sentido formal, mas também o controle da constitucionalidade, da finalidade, da motivação, da razoabilidade e da proporcionalidade dos atos administrativos.

–  A todos esses controles somaram-se recentemente a legislação e o sistema de controle anticorrupção, sistema este fortemente inspirado no FCPA norte-americano e na COM (2011) 308 da Comissão Europeia, a qual tenta incentivar a boa governança e a integridade de empresas que contratam com a Administração Pública.

Apesar disso, é necessário ter em mente que o Brasil ainda está a testar e a aperfeiçoar seu sistema de controles da Administração. O Brasil é um país de democracia recente, atravessou longos anos de escuridão e ditadura, o que lhe legou marcas as quais só se desfazem após algumas gerações. Só o aprofundamento da vivência democrática é que nos levará, no futuro, ao aperfeiçoamento e à consolidação desse sistema de controles.

 

 

Referências

BLONDIAUX, Loic. Le Nouvel Esprit de la Democratie. Paris: Seuil, 2008.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública. São Paulo: Atlas, 2002.

HAURIOU, Maurice. Précis Élémentaire de Droit Administratif. Paris: Sirey, 1925.

MOREIRA, Vital. Administração autônoma e associações públicas. Coimbra: Coimbra Editora, 1997.

 

 

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