A lei anticorrupção e os tribunais de contas

7 de abril de 2017

 

Cesar Santolim
Mestre e Doutor em Direito. Professor da Faculdade de Direito da UFRGS. Auditor Substituto de Conselheiro do TCE/RS

Em1 ocasião anterior, já se destacou o uso do instrumental de Law & Economics como relevante para a compreensão do fenômeno da corrupção.2

Daquele trabalho até este, a classificação do Brasil no ranking da Transparência Internacional sobre percepção de corrupção não se alterou substancialmente. Se em 2011 estava classificado na 73ª posição (entre 183 países), com um índice correspondendo a 3,8 (em uma escala de 0 — altamente corrupto — a 10 — altamente livre de corrupção), em 2013 ficou na 72ª posição (entre 177 países), com um índice de 4,2.3

Esses dados sugerem a importância de encontrar meios adequados ao enfrentamento dessa situação, em relação à qual, parece evidente, os órgãos de controle em geral (e os órgãos de controle externo de contas públicas em particular, que são os Tribunais de Contas, no modelo brasileiro) têm especial responsabilidade.

Reprisa-se aqui, pela pertinência, parte do que já fora antes assinalado:

A abordagem do “Direito e Economia”4 acerca da corrupção a vê mais como um problema de incentivos e organização do que como de moral pública ou de normas.5 A corrupção é tratada como uma “atividade mútua”: uma transação onde os negociantes são, ao mesmo tempo, vendedores e compradores, e as partes são conduzidas pelo seu próprio interesse (privado) ao invés do “interesse público”. Isso não necessariamente implica em “indignidade moral”, mas apenas significa que o desenho das organizações governamentais precisa compensar estes incentivos privados, se quiser estar protegido contra o oportunismo e a exploração. Sob a perspectiva dos seus custos sociais, o dano causado pela corrupção pode ser dividido em dois componentes: o “dano institucional” (que repercute na baixa reputação da Administração Pública) e o “dano efetivo” (por exemplo, o que decorre de não ser contratada uma obra pública pelo seu valor correto, diante de superfaturamento decorrente da existência de corrupção).

Um dado importante, nesta análise, é o de que a corrupção é, via de regra, um modelo de três partes: exige o acordo entre um elemento que integra a Administração Pública com outro, fora dela. Os benefícios deste acordo são partilhados entre estas duas partes as expensas do erário (terceira parte), e, mediatamente, da sociedade.

Como assinala Roger BOWLES, ao tratar dos “custos da corrupção”, é possível identificar quatro situações: rent-seeking costs, custos para a vítima, custos na antecipação do crime e custos do sistema de justiça criminal. Os três últimos são facilmente constatáveis, muito embora, assinala este mesmo autor, em se tratando de corrupção os custos para a vítima (no caso, o erário) são substancialmente mais difusos do que quando se está diante de outra forma de ação criminosa (furto, roubo ou lesão pessoal). Se alguém corrompe um servidor público para antecipar-se a outros indivíduos na prestação de um serviço (concessão de um documento, por exemplo), o prejuízo é suportado, na realidade, por todos os demais indivíduos que foram preteridos por essa antecipação, muito embora o serviço, na realidade, devesse ser prestado, de outra maneira. Menos óbvios são os custos dos “agentes de corrupção” (rent-seeking costs), mas nem por isso menos importantes. Tanto o “corrupto” quanto o “corruptor” tem que dedicar parte dos seus “ganhos” com a corrupção para proteger os seus interesses. Como as transações feitas em situação de corrupção são ilegais, não é dado aos “negociadores” se valerem das formas de proteção que o sistema jurídico outorga ao cumprimento dos contratos, o que significa que estas garantias deverão ser obtidas de outras maneiras. Altos custos de transação, aqui, podem funcionar como mecanismo eficiente de desestímulo à corrupção.

Acrescenta-se, ainda com base no mesmo estudo, que as políticas anticorrupção são frequentemente ambíguas, porque o seu ponto “ótimo” (do ponto de vista econômico, o que quer dizer que é onde a maior eficiência é alcançada) depende de escolha de parâmetros, o que, nem sempre, é feito com acerto. Uma lição extraída da observação sobre essas políticas, afirma Bowles, é um excesso de ingenuidade que pode levar não apenas a criar práticas corruptas, mas até a sustentar as rendas que elas geram. A estrutura de incentivos dentro das organizações deve ser bem compreendida, antes que esforços para prevenir a corrupção sejam implementados. Como exemplo, cita que é lugar-comum que agentes públicos em países de baixa arrecadação são sub-remunerados, ocasionando, por parte destes agentes, diferentes respostas: baixa produtividade e busca por “meios alternativos de remuneração” (entre os quais os derivados de corrupção), entre outras. Daí a percepção (equivocada) de que simplesmente o aumento na remuneração desses agentes públicos, por si só, seria instrumento adequado à redução da corrupção, quando, no mais das vezes, há uma “enraizamento” de determinadas práticas, que não é afastado apenas com essa providência. E esse efeito não é acidental, porque é da essência do comportamento corrupto criar compromissos entre os envolvidos, de modo que rompê-los gera consequências não apenas na perda de “receitas alternativas”, mas também em outras áreas sensíveis (relações corporativas, ambiente social e familiar…).

Por isso a sugestão de medidas mais diversificadas que, quando combinadas, podem produzir efeitos mais profundos: a “rotação” de pessoas dentro das estruturas organizacionais, por exemplo, como evidenciado em estudos realizados no final da década de 1990 e início deste século, demonstrou ser mais eficiente que o aumento de remuneração no combate à corrupção.

Sob a perspectiva dos potenciais corruptores, ademais, a atitude diante da corrupção é, via de regra, pragmática: se é necessário pagar “propina” para obter acesso a um serviço público, ou a um contrato com a Administração, é razoável supor que isso será feito. É (e aqui Bowles está invocando a “teoria dos jogos”) uma solução “não cooperativa”,6 que pode ser inibida se os riscos ou os custos destas ações forem elevados.

Polinsky e Shavell,7 ao tratar de como a corrupção reduz dissuasão e distorce a participação em atividades criadoras de danos, e de quais políticas podem ser empregadas no seu combate, assinalam que uma forma de corrupção é a “propina” (bribery), na qual o agente público aceita uma vantagem pecuniária em troca de não relatar uma violação. Outra é a situação de falsificar evidências (framing), imputando ao particular inocente determinadas responsabilidades, para criar as condições necessárias à extorsão pelo agente público. Segundo esses autores, uma razão pela qual a “propina” é socialmente indesejável é porque dilui a dissuasão, quanto a violações do Direito. Isto porque a “propina” resulta em que o indivíduo se beneficia de um pagamento (custo) inferior ao que suportaria se fosse sancionado pela ofensa.

Considerando λ como a fração obtida pelo agente público do adicional decorrente de um “acordo de propina”, e tendo como referência o valor que seria suportado pelo corruptor se não houvesse esse acordo (f), sempre que λ for menor do que 1 (um) estar-se-á diante de uma situação de “subdissuasão” (underdeterrence), determinando, outrossim, um índice mais elevado de práticas lesivas.

Na segunda prática, igualmente há mitigação na dissuasão decorrente de violações legais. A razão é que a imputação indevida e a extorsão conduzem uma pessoa inocente a se colocar diante de uma sanção esperada, e, portanto, não há (ou há, em um índice inferior) diferença, do ponto de vista individual, em agir ou não corretamente. Se, por exemplo, o indivíduo que descumprir uma norma tem a expectativa de ser sancionado com uma multa de R$1.500,00, mas um indivíduo inocente está sujeito a uma eventual extorsão de R$300,00, então, o custo adicional para o indivíduo inocente descumprir a norma é de R$1.200,00, em vez de R$1.500,00.

Por essas razões, a corrupção reduz o efeito dissuasório das sanções, e distorce decisões quanto a atividades lesivas ao interesse público, e é socialmente desejável o seu controle. Um caminho para reduzir a corrupção, dizem ainda Polinsky e Shavell, é impor penalidades (pecuniárias ou de restrição de direitos, inclusive o de liberdade) para indivíduos apanhados em situação de corrupção, nos moldes preconizados pela novel legislação nacional. Dados fB (sanções aos agentes envolvidos em corrupção) e pB (probabilidade de aplicação destas sanções), haverá dissuasão das práticas de corrupção sempre que o adicional da “propina” ou da “extorsão” for eliminado, ou seja, se pBfB ≥ f. Por outro lado, o pagamento de “propina” será

pBfB + λ (f – pBfB),

que supera λf, daí que a dissuasão do ato lesivo é maior devido ao “sancionamento” da corrupção.

A identificação de um uso ótimo de sanções não monetárias, nesses casos, comporta mesmo um modelo econômico específico.8 Concluem esses autores que muito embora a literatura econômica em matéria de efetividade legal aponte para o fato de que sanções não monetárias deveriam ser usadas com restrições, porque são socialmente custosas, o modelo proposto sugere que essa forma de punição merece uma abordagem diferente. A corrupção, especificamente, torna as sanções não monetárias mais atrativas, como política de combate, porque os custos destas sanções são compensados, com vantagem, pela redução das perdas sociais decorrente do pagamento de “propinas”. Na ausência de corrupção, uma política “ótima” de efetividade legal seria aquela onde os criminosos deveriam suportar sanções monetárias maximizadas e sanções não monetárias tendentes ao mínimo. Nos casos de corrupção, as sanções não monetárias devem ser usadas com maior amplitude, para tornar certo que as vantagens decorrentes dos pagamentos de “propina” ou “extorsão” se aproximem do valor da sanção monetária máxima.

Assim, vista a corrupção como dependente de um sistema eficiente de (des)incentivos, os Tribunais de Contas, no exercício de suas atribuições, podem ser importantes geradores de rent-seeking costs, contribuindo para coibi-la.

A recente entrada em vigor da Lei nº 12.846/2013 (apelidada “Lei Anticorrupção”) contempla algumas situações que merecem a consideração dos Tribunais de Contas, nessa perspectiva de aperfeiçoamento de modelo que amplie os custos de transação dos agentes envolvidos em atos de corrupção, integrantes ou não da Administração Pública.

Como referido no art. 1º da lei, trata-se de dispor sobre a “responsabilização objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas” pela prática de atos contra a Administração Pública. O propósito é o de suprir as limitações do ordenamento jurídico na abordagem da corrupção, como ilícito, já que, quanto a pessoas naturais, a matéria tem regulação na esfera penal (entre outras normas, as que versam sobre os “crimes contra a Administração Pública”, constantes no Título XI da Parte Especial do Código Penal).

Nas hipóteses de “responsabilização administrativa” (Capítulo III da lei), que são, sem qualquer dúvida, casos de “poderer” da Administração, caberá aos Tribunais de Contas fiscalizarem sobre a adequada e correta aplicação da lei, pelos gestores, naquilo que for das suas competências. O administrador público que não efetivar a responsabilização administrativa dos casos de “atos lesivos à administração”, independentemente de não estar ele mesmo envolvido na prática desses atos, responderá perante os órgãos de controle externo, nos termos do caput do art. 70 da Constituição Federal.

Quando o art. 8º da Lei nº 12.846/13 diz que a instauração e o julgamento do processo administrativo para apuração de responsabilidade de pessoa jurídica cabem à autoridade máxima de cada órgão ou entidade dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, que agirá de ofício ou mediante provocação, fica evidente que eventual omissão, no desempenho dessa atividade, caracteriza-se como uma irregularidade a ser apontada e verificada pelos Tribunais de Contas, em atenção ao princípio da legalidade.

Cabe mencionar que não apenas a instauração e o julgamento desse procedimento, mas também a sua regularidade e a efetividade das sanções eventualmente aplicadas estão submetidas à mesma espécie de controle.

De modo similar, quanto ao denominado “acordo de leniência” (arts. 16 da lei), cujo alcance foi estendido aos casos de ilícitos previstos na “Lei de Licitações” (art. 17 da lei), é competente o órgão de controle externo para verificar sobre sua legalidade e eficiência, até pela presença de expressões normativas dotadas de vagueza semântica, como “cooperação plena e permanente”, que só poderão ser aferidas diante de casos concretos.

É importante lembrar, outrossim, que a Lei nº 12.846/13 atribuiu, no âmbito do Poder Executivo federal, à Controladoria-Geral da União (CGU) “a apuração, o processo e o julgamento” dos atos lesivos ao patrimônio público, previstos no mesmo diploma, assim como a realização de “acordo de leniência” (§10 do art. 16 da lei), e que esse órgão centraliza a supervisão técnica do Sistema de Controle Interno da União. Como, por força do disposto no §1º do art. 74 da Constituição Federal, “os responsáveis pelo controle interno” deverão dar ciência acerca das irregularidades de que tomarem conhecimento ao Tribunal de Contas, é inevitável que estas Cortes venham a examinar a aplicação da lei, no estrito exercício de suas competências.

Na medida que os Tribunais de Contas forem, eles próprios, capazes de, pela efetividade da fiscalização, impor aos gestores uma atuação eficiente e eficaz na aplicação da “LeiAnticorrupção”, a atividade de corrupção tende a tornar-se mais “custosa” (sob a perspectiva antes apontada), fazendo com que os agentes econômicos envolvidos, necessariamente, a partir de um comportamento racional,9 tenham que computar a probabilidade de sofrerem sanções, assim como estimem a extensão desses possíveis efeitos, o que afetará a decisão sobre a realização ou não dos atos lesivos. Mesmo os desenvolvimentos mais recentes trazidos pela denominada Behavioral Law and Economics,10 reconhecendo que o comportamento dos agentes econômicos obedece a uma “racionalidade limitada”, não compromete o uso desse instrumental analítico para a melhor compreensão do fenômeno da corrupção.

Caberá às Cortes de Contas aparelharem-se dos conhecimentos necessários à implementação das melhores práticas de fiscalização e controle, capazes de induzir corruptos e corruptores a considerar de “alto custo” a atividade da corrupção, o que será a melhor forma de combatê-la.


1    Artigo originalmente publicado em: LIMA, Luiz Henrique (Coord.). Tribunais de Contas: temas polêmicos – na visão de Ministros e Conselheiros Substitutos. Belo Horizonte: Fórum, 2014. 248 p. ISBN 978-85-7700-941-1.

2    Corrupção: o papel dos controles externos: transparência e controle social: uma análise de direito e economia. Revista Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito/UFRGS, v. 7, n. 1, dez. 2012. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/index.php/ppgdir/issue/view/1958/showToc>.

3    Dados obtidos no site Transparency International – The Global Coalition Against Corrupion. Disponível em: <http://cpi.transparency.org/cpi2013/results/>. Acesso em: 30 abr. 2014.

4    A disciplina de “Law and Economics” (“Direito e Economia”) é uma das mais importantes abordagens teóricas no pensamento norte-americano, desde a segunda metade do século passado. Hoje repercute também no pensamento europeu e latino-americano. Recentes trabalhos publicados no Brasil traduzem esta expansão (cite-se a tradução da obra de Robert Cooter e Thomas Ulen, Direito & economia (Porto Alegre: Bookman, 2010); e os trabalhos organizados por Bruno Meyerhof Salama, Direito e economia: textos escolhidos (São Paulo: Saraiva, 2010) e por Luciano Benetti Timm, Direito e economia no Brasil (São Paulo: Atlas, 2012)).

5    BOWLES, Roger. Corruption. In: GAROUPA, Nuno (Ed.). Criminal Law and Economics. 2nd ed. Northampton, MA: Edward Elgar, 2009. Encyclopedia of Law and Economics, v. 3.

6    Seria mais conveniente para todos os que querem ter acesso ao serviço ou contrato que nenhum deles pagasse propina. Essa seria a solução “cooperativa”. Para que isso ocorra, todavia, é necessária uma “ação de cooperação”, que raras vezes pode ser executada, mormente em organizações de grande porte, como é o Estado, porque a quantidade e diversidade dos agentes envolvidos é enorme (os custos de transação — identificação, negociação e implementação — seriam demasiados). Diante dessa circunstância, os “potenciais corruptores” adotam uma política de second best: como eles não podem estar certos de que outros agentes praticarão atos de corrupção, em seu desfavor, optam por agir eles mesmos nesse sentido.

7    POLINSKY, A. Mitchell; SHAVELL, Steven. Handbook of Law and Economics. Amsterdam: North-Holland, 2007. v. 1, p. 440-442.

8    GAROUPA, Nuno; KLERMAN, Daniel. Corruption and the Optimal use of Nonmonetary Sanctions. International Review of Law & Economics, v. 24, n. 2, p. 219-225, 2004.

9    A partir da contribuição de Gary Becker, em 1968, “Crime and Punishment: an Economic Approach” (Journal of Political Economy, v. 76, n. 2, p. 169-217), agraciado com o “Nobel de Economia” (Prêmio de Ciências Econômicas em memória de Alfred Nobel), em 1992, foi desenvolvido o modelo segundo o qual os partícipes de uma atividade criminosa são “calculadores racionais” e, como tais, tomam as suas decisões baseados em uma comparação entre custos e benefícios. Isso permite concluir que um eventual incremento nos “custos” de se praticar um crime funciona como desincentivo à sua prática. Para mais detalhes sobre as aplicações (e limitações) da aplicação da teoria da escolha racional em Direito e Economia, veja-se Thomas Ulen (Rational Choice Theory in Law and Economics. In: BOUCKAERT, Boudewijn; DE GEEST, Gerrit (Ed.). The History and Methodology of Law and Economics. Northampton, MA: Edward Elgar Publishing, 2000. (Encyclopedia of Law and Economics, v. 1).

10   KOROBKIN, Russel; ULEN, Thomas. Law and Behavioral Science: Removing the Rationality Assumption from Law and Economics. California Law Review, v. 88, n. 4, p. 1051-1144, July 2000.

 

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