As inovações trazidas pela prestação regionalizada dos serviços públicos de saneamento básico pelo novo Marco Legal – Lei Federal nº 14.026/20 | Coluna Saneamento: Novo Marco Legal

25 de novembro de 2020

Autora do artigo:
Ana Carolina Hohmann
é Advogada, Mestre e Doutora
em Direito do Estado pela USP

Uma das inovações mais relevantes advindas das alterações imprimidas pela Lei federal nº 14.026/20 (Novo Marco Legal do Saneamento – NMLS) no texto original da Lei federal nº11.445/07 se refere o tratamento dado à prestação regionalizada dos serviços de saneamento. Se a disciplina já existia no diploma legal de 2007 (art. 3º, VI, definindo-a como aquela em que um único prestador atenderia a dois ou mais titulares), bem como nas Leis federais nº 13.089/15 (Estatuto da Metrópole) e nº 10.257/01 (Estatuto da Cidade) de modo genérico, seu tratamento foi aprofundado, evidenciando a intenção do legislador de criar estímulos à prestação regionalizada e à gestão associada pelos municípios, com o objetivo de imprimir maior eficiência à prestação dos serviços, a tão aclamada universalização e um desenvolvimento regional mais equânime.

Em verdade, dada a natureza dos serviços públicos de saneamento básico, a atuação do legislador nesse sentido demonstra o reconhecimento de uma realidade: tais serviços desconhecem as fronteiras geográficas entre municípios e Estados criadas normativamente, ao abranger atividades como o abastecimento de água potável, o esgotamento sanitário e a deposição final de resíduos sólidos atividades que, não raro, transpõem as fronteiras da municipalidade.  A título de exemplo, é comum que a captação de água se dê em município diverso daquele onde ocorre o abastecimento. De modo análogo, o manejo e deposição dos resíduos sólidos – especialmente nos grandes centros urbanos e nas regiões metropolitanas – poderá ser realizado em município que não o de origem, em virtude de fatores de ordem prática, como a existência (ou inexistência) de um local adequado para a execução do serviço. Logo, é coerente que o planejamento, organização e prestação das atividades relacionadas ao saneamento básico se dê no âmbito regional, de modo integrado e coordenado por vários entes, num ambiente de consensualidade e governança interfederativa.

Ainda, os altos custos envolvidos na criação de redes de saneamento, confrontados à necessária observância do princípio da modicidade tarifária, colaboram para que a sua prestação se dê de forma integrada, com a repartição do investimento necessário ao planejamento, construção, manutenção e operação da rede entre diversos entes. A prestação regionalizada, em muitas situações, a torna economicamente viável, permitindo a atuação de um investidor ou operador em municípios onde esta seria deficitária quando realizada de modo individualizado e portanto não despertaria interesse. Dessa forma, tende-se a ampliar a competitividade e elevar a qualidade dos serviços fornecidos à população.

O novo marco legal do saneamento erigiu a prestação regionalizada à qualidade de princípio (art. 2º, XIV) e criou novos modelos à sua estruturação, conforme dispõe o artigo 3º, VI – além das já conhecidas regiões metropolitanas, microrregiões e aglomerações urbanas, a Lei federal nº 14.026/20 instituiu as figuras da “unidade regional de saneamento básico” e do “bloco de referência” – os primeiros instituídos pelos Estados e os últimos pela União, mediante leis ordinárias. Diferentemente das regiões metropolitanas, os municípios que integram as unidades regionais de saneamento básico e os blocos de referência não têm de ser limítrofes. Ainda, a atuação da União, na instituição dos blocos de referência deverá se dar de forma subsidiária à dos Estados, em homenagem à lógica que impera no modelo federalista brasileiro e ao princípio da subsidiariedade. Ademais, em que pese a instituição dos blocos de referência se dê por ato normativo emanado da União (lei ordinária federal), estes somente serão formalmente criados por meio da gestão associada dos titulares.

O novo marco legal do saneamento, respeitando a compreensão de que a titularidade desse serviço público é municipal, afirmou ser facultativa a adesão às estruturas de prestação regionalizada quando o saneamento se qualificar como serviço público de interesse local (art.8º-A) – ou seja, quando as infraestruturas e instalações operacionais subjacentes atendam apenas um município. O mesmo se dá no que se refere às Regiões Integradas de Desenvolvimento (Ride). Em oposição, quando o saneamento se trata de serviço público de interesse comum, nas hipóteses em que o município integra região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião (onde a participação do município é compulsória, nos termos da lei complementar estadual que a instituiu) e houver o compartilhamento de instalações operacionais de esgotamento sanitário e/ou abastecimento de água, a prestação regionalizada é solução que se impõe.   

Em que pese a expressa titularidade municipal do serviço público de saneamento básico quando esse é qualificado como serviço de interesse local, o legislador, no projeto que deu origem à Lei federal nº 14.026/06, achou por bem criar estímulos à gestão e prestação associada, incitando a associação voluntária dos municípios ante os benefícios que podem advir dessa atuação. 

Ao tratar da política federal de saneamento básico e seus objetivos, o novo marco legal do saneamento básico elenca a promoção da regionalização dos serviços, “com vistas à geração de ganhos de escala, por meio do apoio à formação de blocos de referência e à obtenção da sustentabilidade econômica-financeira do bloco” (art. 49, XIV). A iniciativa pretende tornar o setor mais atrativo para a participação de atores privados na qualidade de investidores, além das companhias estaduais de saneamento que já tradicionalmente atuam na prestação dos serviços. Isso porque a prestação regionalizada ou formação de blocos busca garantir maior sustentabilidade econômico-financeira ao serviço público de saneamento e viabilizar a sua prestação em municípios de menor porte, onde, muitas vezes, a prestação individualizada se mostraria deficitária ou pouco lucrativa. Ao se planejar a prestação integrada, num contexto de gestão associada, unindo municípios superavitários a outros deficitários, busca-se garantir a sustentabilidade da operação e ofertar melhores serviços à comunidade.

Quando o serviço público de saneamento for realizado de forma regionalizada, as metas de universalização impostas no novel artigo 11-B da Lei deverão ser apreciadas no âmbito da região. Do mesmo modo, a formulação do plano de saneamento básico deverá ser pensada no espaço regional, devendo contemplar a diversidade dos entes federativos partícipes e considerando a adequada governança interfederativa da região. O mesmo é válido para a realização dos estudos de viabilidade técnica e econômico-financeira da execução dos serviços, os quais deverão demonstrar, inclusive, que a prestação regionalizada se mostra como o mecanismo mais adequado ao seu desempenho. Ainda, haverá a designação de uma única entidade reguladora responsável pelo ente regional, a ser eleito por este, nos termos da concepção de governança interfederativa, bem como normas regulatórias uniformes.

Com a eleição de um regulador único para a atuação no espaço regional, pretende-se melhorar a qualidade da regulação e assegurar maior uniformidade normativa, a partir das normas de referência a serem elaboradas pela Agência Nacional de Águas (ANA). Há ainda a expectativa do setor de que a Agência federal defina minutas padrão de contratos de concessão e regras padrão de fiscalização do serviço, com as agências locais realizando as adaptações necessárias à sua realidade. Tais fatores tendem a se mostrar positivos à atuação privada no setor, à medida que os potenciais prestadores, ao manifestar interesse em exercer suas atividades em espaços regionais diversos, não estarão sujeitos a uma miríade de normas regulatórias e a excessiva variedade de editais de licitação, como tende a ocorrer quando cada município atua individualmente. Ainda, poderá estar sujeito a um menor número de reguladores, os quais, pretende-se, deverão ser, teoricamente, mais bem qualificados e adotarão regras mais uniformes. Não se pode ignorar que num país onde há mais de 5.500 municípios, a sujeição de parceiros privados em potencial na prestação do serviço público de saneamento a tão grande heterogeneidade de regramentos municipais e a uma multiplicidade de agentes reguladores, que operam sob lógicas distintas, dificulta a sua atuação, podendo levar a uma redução do número de atores num mercado em que a competitividade e a concorrência se mostram salutares. 

Inovação relevante oriunda do novo marco legal advém de seu artigo 50, cujo inciso VI passa a vincular a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou com recursos geridos, ou operados por órgãos, ou entidades da União à estruturação da prestação regionalizada. Vê-se, portanto, que, em que pese a adesão a essas entidades não seja mandatória, ela é fortemente estimulada, uma vez que é natural que os titulares do referido serviço tenham interesse em acessar tais recursos financeiros federais. Ainda, o §1º do mesmo artigo 50 prevê que na aplicação de recursos não onerosos da União, terão prioridade os investimentos que viabilizem a prestação regionalizada por meio de blocos regionais, quando a sua sustentabilidade econômico-financeira não for viável apenas com os recursos oriundos de tarifas ou taxas. 

O Projeto de Lei nº 4.162/2019 (convertido na Lei federal nº 14.026/20) trazia ainda a previsão de que a União apoiaria a organização e a formação dos blocos de prestação de serviços de saneamento regionalizada mediante a disponibilização de recursos federais e fornecimento de assistência técnica. Era essa a intenção do legislador ao propor a redação do §12 a ser inserido no mesmo artigo 50. Todavia, a disposição sofreu veto presidencial sob o argumento de que a inovação normativa não apresentaria a estimativa do respectivo impacto orçamentário e financeiro e, portanto, violaria as normas do artigo 113 do ADCT, os artigos 16 e 17 da Lei de Responsabilidade Fiscal  e o artigo 114 da Lei de Diretrizes Orçamentárias para o ano de 2.020 (Lei federal nº 13.898/19).      

Reconhecidos os vários incentivos à prestação regionalizada do saneamento básico que as inovações trazidas pelo Novo Marco Legal do Saneamento trouxeram à norma original, observa-se que o legislador realizou um esforço no sentido de afastar a prestação individual pelos municípios, estimulando a gestão associada pelos blocos de referência e pelas unidades regionais de saneamento básico. O intuito parece ser o de ampliar a escala na execução dos serviços e criar blocos heterogêneos, onde a presença de municípios deficitários é compensada pela de superavitários, tornando-os atrativos a investidores – públicos ou privados, assegurando que a ampliação na cobertura dos serviços de saneamento básico ocorra nos diversos perfis de municípios, beneficiando mais amplamente a população brasileira, com vistas à universalização.

 

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Um comentário em “As inovações trazidas pela prestação regionalizada dos serviços públicos de saneamento básico pelo novo Marco Legal – Lei Federal nº 14.026/20 | Coluna Saneamento: Novo Marco Legal

  1. Valdir Lemes da França disse:

    Muito oportuna as considerações da autora, lembrando que os municípios não tem condições financeiras para arcar com mais esse dispêndio, tendo em vista os gastos obrigatórios com folha, educação e saúde. Se o governo federal não for complacente com apoio financeiro de nada adiantará a lei editada. É impossível entender que sabendo que envolveria recursos financeiros, a equipe técnica não tenha apresentado o estudo de impacto orçamentário e financeiro. Parabéns pelo artigo. Valdir Lemes da França. Compliance Office.

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