Breves considerações sobre os futuros possíveis para o Direito Civil brasileiro no aniversário de 20 anos da codificação vigente

25 de janeiro de 2022

Coluna Direito Civil

futuros possíveis para o Direito Civil

Fazer uma reflexão prospectiva para as próximas décadas não é uma tarefa fácil, especialmente quando verificamos a velocidade com que as inovações tecnológicas vêm ocorrendo, provocando uma série de disrupturas no modo como as pessoas se relacionam, com intenso impacto na forma de interpretação do direito privado. Como estamos nos preparando para lidar com as demandas de um mundo cada vez mais complexo, fluido e veloz?

O impacto da revolução tecnológica relativizou as noções de tempo e espaço. Diariamente somos soterrados de informações e já não temos condições de convertê-las satisfatoriamente em conhecimento e refletir sobre todos os temas e assuntos que estão à disposição de qualquer um de nós, em qualquer lugar e a qualquer tempo. Vivemos num momento no qual a grande maioria das pessoas deseja opinar sobre todo e qualquer assunto, relativizando-se fontes de conhecimento tradicional, bem como os requisitos, objetivos e parâmetros da pesquisa científica. Objetividade e ubiquidade, desprovidas de aprofundamento e de uma análise crítica propositiva, parecem não convergir para uma formação sólida, que ofereça o embasamento necessário para o enfrentamento dos conflitos surgidos a partir desta revolução que experimentamos como novo elemento em nossa rotina.

Aqui não é espaço para se avaliar, positiva ou negativamente o que está ocorrendo. As ponderações anteriores têm caráter descritivo, na intenção de capturar apenas uma fotografia deste momento, pois é muito difícil se avaliar o impacto (quer seja presente ou futuro) de uma revolução contemporânea em nossa própria existência. Tanto no campo acadêmico quanto no campo profissional, preocupa-me a crescente dificuldade de os operadores jurídicos (magistrados, advogados, membros do Ministério Público…) lidarem com situações cada vez mais complexas.

O modelo contratual clássico, por exemplo, com suporte em papel e vocação puramente patrimonial, não é mais suficiente para uma realidade negocial plural, transnacional e em constante mutação, provocada por avanços tecnológicos que mudaram não apenas o nosso modo de comunicação e interação com o próximo, mas também a forma como registramos os atos que praticamos e até mesmo os bens objeto dos negócios jurídicos que celebramos. Enquanto nosso Código Civil remete à contratação entre ausentes por correspondência epistolar e detalha formas de contratação envolvendo bens imóveis com observância de requisitos formais específicos, registrados em um suporte físico (papel), a maioria dos alunos que iniciam seus passos no mundo do Direito vive num período em que nunca experimentaram enviar uma carta para um amigo pelo correio, não atribuindo importância à conservação de documentos físicos, quando guardam “na nuvem” informações e dados que consideram importantes.

A interação social ocorre em redes sociais, normalmente de forma escrita em mensagens de poucos caracteres, arquivos de áudio de poucos minutos, sendo cada vez mais raro encontrar, entre as novas gerações, quem utilize primordialmente o telefone para a função de ligar e conversar em tempo real com outra pessoa. Vivemos num período em que as noções de tempo e espaço são redefinidas pela forma de interação tecnológica que adotamos. A tecnologia mudou antigos hábitos, e com ela surgiu a necessidade de desenvolvermos novas habilidades.

Mas nem todos abraçam a tecnologia e suas funcionalidades com a mesma rapidez e/ou têm acesso aos mesmos recursos. Se antes havia uma clara distinção entre os que eram alfabetizados e aqueles que não conseguiam ler, o avanço tecnológico criou barreiras que podem ser ainda mais difíceis de transpor do que a alfabetização de um indivíduo.

Em tempos de obsolescência programada e de uma incessante busca por novas funcionalidades e interação, não é nada fácil manter-se atualizado, conseguindo dominar o último modelo de computador, smartwatch ou smartphone, nova versão do sistema operacional, definições de segurança da informação e acesso remoto a dados.

Se você consegue garantir atualização nisso, é preciso perguntar ainda se tem o mesmo nível de informação e desenvoltura quando o tema da conversa passa por IOT (internet das coisas), aplicações com uso de inteligência artificial ou registros blockchain. Isso sem falar em registros biométricos para criptografia e nos demais aspectos relativos à infraestrutura relacionada aos avanços tecnológicos. Aqueles que receberam formação jurídica nos últimos 30 anos acostumaram-se a buscar a solução de todos os problemas exclusivamente no campo jurídico e raramente realizavam incursões noutros campos do saber. Mas o monopólio das soluções a partir das normas jurídicas não é possível no cenário atual, considerando os avanços científicos.

Difícil propor soluções para o que não conhecemos em profundidade ou de que não vivenciamos a utilização. Como entender um match numa rede social, as consequências de um bloqueio de seguidor ou o compartilhamento em serviços de streaming sem a experiência de ser usuário de uma aplicação de semelhante natureza?

Muito do que ocorrerá daqui em diante decorre direta e imediatamente da forma como os institutos clássicos do Direito Privado foram ressignificados a partir do advento da Constituição Cidadã e do Código Civil de 2002. Comecemos pelo reconhecimento de novos sujeitos de direito, a partir da consolidação de uma nova forma de compreensão da natureza jurídica dos animais. Tais seres sensíveis integrarão o quadro daqueles que podem figurar numa relação jurídica juntamente com seres artificiais, máquinas com identidade e patrimônio independente dos seus criadores? Concepturo, embrião, nascituro, pessoa natural, seres sensíveis, pessoa jurídica e pessoa artificial coexistirão num cenário em que a morte não extinguirá todas as relações jurídicas daqueles que além da vida no mundo físico fazem do meio virtual o locus principal de suas interações sociais?

Mantido o rumo atual das discussões no âmbito do Poder Judiciário, é possível antever que as tradicionais categorias de sujeito de direito passarão por um intenso desenvolvimento do atributo capacidade; categoria cada vez mais complexa e peculiar a cada sujeito individualmente considerado de acordo com as particularidades do caso concreto:  ter ou não ter capacidade, ser vulnerável, ostentar uma condição de desvantagem transitória ou perene, genética ou adquirida…

A verificação da habilitação, vale dizer, do reconhecimento para a prática de atos jurídicos, merecerá cada vez mais atenção na direção da igualdade material, de matiz inclusiva, diversa e plural, o que exige decisões judiciais com significativo ônus argumentativo para o julgador, que estabelecerá os limites e possibilidades de atuação de cada sujeito individualmente considerado. E não é só no elemento subjetivo que a relação jurídica continuará a ser ressignificada nos próximos anos. Com o declínio da utilização de suportes físicos como o papel, intensificar-se-á o estudo da prova dos fatos jurídicos, mediante o desenvolvimento de instrumentos que possam conferir maior segurança e confiabilidade aos arranjos contratuais em suas mais variadas formas. Os requisitos formais de existência, validade e eficácia precisarão ser multiplataformas e deverão apresentar aspectos que permitam sua sobrevivência a cada novo salto tecnológico para não ficarem obsoletos.

Neste cenário, o valor da informação como bem jurídico, em todas as suas formas e meios para seu armazenamento e segurança, estará na ordem do dia. Diante de tais constatações, salta aos olhos a importante questão da exclusão digital de considerável parte da sociedade para lidar com estruturas complexas criadas para o mundo digital.

Se o processo de constitucionalização do direito privado retirou do Código Civil a centralidade da orientação hermenêutica do sistema, papel que passou para o texto constitucional, o surgimento de novos modos de comunicação e conexão, a flexibilidade dos suportes para registro de dados e o intenso ritmo das transformações tecnológicas amplificarão de modo significativo o diálogo entre as fontes, em várias dimensões, quer sejam locais, regionais ou transnacionais, numa superposição de diplomas legislativos tratando de assuntos concorrentes e bastante específicos, como já vem ocorrendo com temas relacionados à proteção da privacidade e ao tratamento dos dados pessoais.

No campo obrigacional, novas moedas, meios de pagamento, transações eletrônicas e os problemas de jurisdição se intensificarão, na medida em que novos arranjos contratuais e formas de garantia surgirem. Contratos parciais, incompletos, multipartes, padronizados, elaborados por inteligência artificial para relações contratuais massificadas e praticados exclusivamente com base no comportamento social típico, sem atenção para a capacidade negocial, continuarão a demandar a figura de um ser humano para sua interpretação, apesar dos avanços da tecnologia relacionada à inteligência artificial, na medida em que não se pode afastar do Poder Judiciário ameaça ou lesão a direito.

Já se começa a discutir a substituição de seres humanos por máquinas na análise e execução de contratos massificados. Se tal preocupação se mostrar procedente num futuro próximo, toda a dinâmica do mercado de trabalho para operadores jurídicos será afetada por aplicações automatizadas de jurimetria e análise econômica do impacto de decisões judiciais que afetam grupos sociais específicos.

Já ingressando no campo das titularidades, dentro de uma perspectiva de compartilhamento proprietário de intensidade ainda não experimentada, formas tradicionais de garantia perderão espaço num contexto de contratos relacionais de longa duração, cada vez mais complexos e internacionais. A autonomia clássica do sujeito, baseada na aquisição de patrimônio (preferencialmente, bens imóveis), cede espaço para uma sociedade em que a experiência do utilizar, ainda que por um curto período, começa a ser mais valorizada do que o “ter” a titularidade do bem. Plataformas de streaming, de compartilhamento de formas de transporte e habitação estão ressignificando o valor que tradicionalmente se atribui aos bens no mundo físico.

Se novas formas de bens passam a ocupar o centro de interesses de uma sociedade que atribui crescente valor à troca de informações e ao tratamento de dados, modos de preservação e transferência de tais ativos terão que ser implementados. Se no momento tecnologias similares ao blockchain parecem despontar como possibilidade mais promissora, prescindindo de autoridades centrais para assegurar a confiabilidade da documentação e negociações preservadas em cada um dos seus blocos, a preocupação com o impacto ambiental da massificação de tal tecnologia pode ensejar uma mudança de rumo no cenário atual.

Merecerá destaque o modo como resolver eventuais controvérsias sem a necessidade de se recorrer ao Judiciário e/ou longas listas de negócios processuais para tentar chegar mais rápido ao deslinde das lides negociais. Ficará cada vez mais evidente o conflito entre a quantidade de conflitos que necessitam de solução e a qualidade das decisões tomadas para solucioná-los quando estas não incluírem os participantes no processo de resolução da controvérsia.

Se os contratos massificados e impessoais típicos do mercado de consumo passarão a ser tratados em sua maioria (pelo menos em algumas etapas) por inteligência artificial, problemas decorrentes do abuso ou má utilização da tecnologia criarão novos desafios, exigindo do operador jurídico um ferramental de capacidades e habilidades que hoje ainda não são valorizadas como deveriam ser.

Tudo isso vai exigir uma nova forma de ensino jurídico que incorpore de modo proativo e prospectivo as novas tecnologias de aprendizagem e as ferramentas de inteligência artificial, que, ao mesmo tempo em que libertarão os operadores jurídicos de funções meramente burocráticas, exigirão novas capacidades de argumentação e planejamento, como solução de conflitos e desenvolvimento de estratégias específicas para resolução de novos problemas, num horizonte em que ficam cada vez mais tênues as diferenças entre os interesses públicos e privados.

Num momento de transição entre o universo de usuários e não usuários, dos iniciados em tecnologia e daqueles que não se importam em entender como ela funciona, é nos contratos que buscamos ferramentas de tradução da realidade e a prevenção dos problemas que essa intensa disparidade de conhecimento provoca, exigindo de quem atua na área a máxima atenção com a boa-fé objetiva e o dever de informação, que não deve se limitar à redação de cláusulas contratuais.

Lidamos com interesses diversos, acesso a informações de modo assimétrico, que se repete no campo financeiro e técnico. Lidar com assimetrias e com questões que transcendem interesses individuais para o campo dos direitos transindividuais e difusos faz-se presente na agenda de qualquer profissional. De um trabalho tradicionalmente individualista, realizado na solidão de nossos escritórios, passamos a experimentar um espaço aberto de colaboração, no qual múltiplos saberes e competências são necessários para lidar com intricadas questões, quer sejam sobre aplicações da engenharia genética para a saúde, quer seja sobre a utilização de informações pessoais por terceiros para fins econômicos, ou ainda o risco do desenvolvimento de novas tecnologias em substituição por máquinas de atividades exercidas por seres humanos.

Via de regra, experimentamos um período de lacuna legislativa sobre parte considerável dos avanços tecnológicos citados. Enquanto operadores do Direito, não podemos aguardar a elaboração de novas leis para tratar das situações que já estão a ocorrer. Há que se funcionalizar e ressignificar institutos clássicos e fazer uso de uma hermenêutica que garanta efetividade aos direitos e garantias fundamentais de nossa Constituição. A fronteira de até onde avançaremos com a inteligência artificial e a internet das coisas ainda está longe de ser definida. Mas o receio daqueles que imaginam que serão substituídos em breve por uma máquina pode reduzir um pouco se nos prepararmos para um novo período no qual a capacidade de argumentação e a criatividade ganharão cada vez mais espaço em detrimento da cômoda opção de realizar tarefas repetitivas. Tem-se afirmado com frequência que não podemos ignorar os avanços. Mas disrupção e inovação não significam ignorar de onde viemos. Se pretendemos visualizar para onde estamos seguindo, é preciso compreender como chegamos até aqui e quais foram os agentes da mudança.

Sem entender nossos erros e como eles ocorreram, estamos fadados a repeti-los. Se todos parecem concordar que a perspectiva é de mudança, os caminhos para ela não são unânimes e alguns parecem bem tortuosos. Para lançar um pouco de luz sobre a direção a seguir, devemos reafirmar nosso compromisso com a proteção dos sujeitos na perspectiva da alteridade e solidariedade.

 

Marcos Ehrhardt Júnior
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Professor de Direito Civil da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
e do Centro Universitário Cesmac. Editor da Revista Fórum de Direito Civil (RFDC).
Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil).
Presidente da Comissão de Enunciados do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).
Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont)
e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC).

 

O presente texto representa uma versão reduzida do artigo disponível em: EHRHARDT JR., Marcos. Breves considerações sobre o presente e os futuros possíveis para o Direito Civil brasileiro. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos (Coord.). Direito Civil: Futuros Possíveis. Belo Horizonte: Fórum, 2022. p. 251-261. ISBN 978-65-5518-281-1.

 

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