Carta aberta às mulheres

8 de março de 2021

Maria Amélia Mello
Diretora Executiva da FÓRUM

 

Há um ano, 8 de março de 2020, ainda não vivíamos a pandemia. Essa afirmação me surpreende. Houve um tempo antes e haverá um tempo depois dela. Os primeiros indícios já surgiam. Pouco mais de dez dias depois, em 19 de março, numa vertigem de decisões que se agravavam hora a hora, colocamos 95% da empresa em trabalho remoto, situação que se tornou definitiva. Começava, para a FÓRUM e para o Brasil, a crise trazida pelo novo vírus.

Para o mercado editorial o efeito foi devastador. Em queda há anos, em um país com baixa tradição de leitores, ela significou o sepultamento de muitas editoras e livrarias. Mas para a FÓRUM foi diferente. Foi diferente por sermos mulheres, por vivermos o feminino com tenacidade. Por isso, escrevo esta carta aberta num 8 de março.

Não afirmo que a FÓRUM é mulher somente porque eu, diretora executiva, sou mulher. Assim como 75% da alta gestão, 65% do Conselho Gestor e cerca de 56% do quadro total de colaboradores. Esses números são consequência da forma como vivemos o trabalho aqui. É ela que nos torna um lugar onde as mulheres podem chegar com firmeza, crescer e se realizar. Assim como é consequência dessa forma feminina de ser o nosso crescimento mesmo durante tudo isso que vivemos como humanidade. 

Se antes já tínhamos uma cultura de compartilhar e não reter, de servir e não competir, de delicadeza e não agressividade, na pandemia aprofundamos nossas bases. Colocamos todo o nosso foco em ser um ponto de segurança e estabilidade para nossos colaboradores no caos que emergia. Protegemos com todos os meio a sua saúde integral. Zelamos pela integridade emocional, mental, financeira e física  de cada um deles, ainda que em detrimento da projeção de resultados.

Em bom português, nós cuidamos das pessoas. Cuidamos de verdade. Nada de enxugar o quadro antes de exaurir todas as outras tentativas. Nada de reduzir salários num momento em que muitas famílias passaram a contar somente com a renda de quem trabalhava na FÓRUM. Nada de metas de venda insensíveis ao novo contexto do mercado. Nada de cortar iniciativas como aula de ioga, grupo de acolhimento psicológico, palestras e treinamento de gestores em segurança emocional: na verdade, criamos e ampliamos. O resultado foi uma empresa em crescimento com a melhor equipe que já tivemos, colhendo resultado após resultado mesmo no cenário o mais hostil. 

No meio disso tudo, lá estavam as nossas mulheres. Isolamento social, crianças sem escola e com aulas em casa, idas ao supermercado transformadas em odisseias, a carga de trabalho invisível já enorme se avolumou ao infinito. Com seus familiares perdendo renda, pressionados no trabalho, adoecidos em diversos âmbitos, mesmo assim elas dobraram sua dedicação e se tornaram gigantes, cada uma em suas funções, fazendo a nossa FÓRUM mudar de patamar como empresa. 

Por mais que ventasse, por mais que nevasse, por mais frio que fizesse, por menos luz que houvesse, era o tempo delas. As flores não paravam de surgir naquela árvore seca, uma após a outra, ressignificando o inverno com uma possibilidade de primavera. Porém, esta não é uma carta-postal com o registro do desabrochar de cerejeiras, embora pudesse ser. 

Esta foi a crise que mais atingiu o  trabalho feminino. Pela primeira vez desde que há registros, o emprego feminino foi o mais prejudicado. As causas não são complexas. Mulheres normalmente ganham menos, assumem mais trabalho doméstico, e num cenário em que a renda se fez escassa e o trabalho da casa se tornou imenso. 

Desconfio que há ainda um ponto mais sutil. Já se vão 92 anos que Virginia Woolf defendeu que para exercer um trabalho criativo a mulher precisava de um teto todo seu. Ela falava do trabalho de escrita, eu expando aqui o conceito. Não é somente uma questão de manter a concentração para terminar um relatório enquanto o filho exige atenção. É algo mais sutil. É aquele espaço imaterial, aquele abrigo emocional de não precisar pensar no almoço a fazer, no excesso de eletrônico das crianças, na torneira que está pingando, na roupa que já terminou de bater, na possibilidade da mãe idosa ter se esquecido da hora do remédio, tudo isso após uma noite mal dormida, pois o bebê ainda acorda algumas vezes de madrugada. 

São tarefas feitas sempre com amor, mas que não permitem que a alma tenha respiro e possa juntar uma ideia com a outra, e produzir algo totalmente novo e genial. Os escritórios, ainda que na forma de uma mesa e uma máquina de café, proporcionavam um abrigo temporário da Casa, essa entidade viva. Em home office, se ganhamos tempo com essa junção, perdemos esse espaço reservado somente para o trabalho, que pode ser precioso.

Enquanto cuidado for “coisa de mulher”, as chances de que uma mulher possa de fato exercer com plenitude sua criatividade, possa de fato realizar todo seu potencial profissional, serão sempre limitadas. Enquanto nutrir, educar, amparar, ouvir, estruturar as condições de manutenção da vida e todas essas mínimas e infindáveis coisas cotidianas que se impõe para que a existência humana prospere, enquanto tudo isso for relegado ao feminino, os espaços de criação podem até vir a existir, pois somos mestras em cavá-los como dá, em achar brechas. Mas com que frequência e a que custos pessoais e sociais? 

Essa carta foi escrita no último tempo do prazo, com uma pequena filha comendo maçã e vendo TV com a cabeça no meu notebook. Teria talvez sido uma carta melhor se fosse escrita num escritório após umas horas livres de meditação e leitura. Garanto que teria sido menos difícil de escrever. Sei que enternece a imagem de cachinhos e bochechas à vista, e de fato são o amor da minha vida. Mas fazer sempre duas, três, cinco coisas ao mesmo tempo, ainda que mentalmente, drena nossas forças e tira a qualidade do resultado, e o pior: das nossas vidas. Custa um esforço tremendo – as estatísticas de doenças mentais em mulheres não mentem. Imagino quantas de nossas autoras não terminaram assim suas teses, suas obras. E cogito se por isso, entre outras razões, haja bem mais autores homens que nos trazem seus originais.

Cuidar é sim maravilhoso. Aquece o coração. Criar condições para que outros se desenvolvam é a coisa mais linda e realizadora do mundo. Essa é, na verdade, uma carta de amor. Por que precisa ser feita só por mulheres? Cuidar não é o problema, o problema é que uns só cuidem, e outros só sejam cuidados. 

Das muitas questões sociais escancaradas pela pandemia, no dia das mulheres esta foi a que escolhi iluminar. Há quase um século pedimos um teto todo nosso para escrever nossos livros, criar nossas empresas, inovar nossos processos, realizar nosso potencial. Não sei que inovações no trabalho, na sociedade e em nossos corações serão necessárias para que tenhamos garantido esse espaço anímico. Os meus anos de vida, que se tornam agora ainda mais incertos, serão para oferecer teto para que o maior número de mulheres possam florescer. 

3 comentários em “Carta aberta às mulheres

  1. Obrigada Maria Amélia!
    Graças a Fórum hoje sou uma mulher, mãe, que conseguiu adquirir sua casa mesmo com esse cenário tão triste, que hoje pode ajudar o esposo com as despesas da casa, que hoje pode acompanhar o crescimento da minha Maria Clara e contribuir para o crescimento da Fórum. Me sinto realizada.

    Um forte abraço.

    Feliz dia da mulher.

  2. Angélica Fátima Lisboa de Souza Lisboa de Souza disse:

    Que lindooo, amei! Que privilégio fazer parte de uma empresa tão humana e tão feminina. Agradeço a Deus pela sua vida e pela sua família que tem sido benção , verdadeiros anjos na vida de tantas pessoas. Muito obrigada pelo carinho e pelo tempo prestado pra escrever algo que aquece o coração e que pelo pouco que conheço tenho certeza que vem do fundo do coração. Feliz dia das mulheres, guerreira que nos inspira a quereremos ser cada dia a nossa melhor versão.

  3. ANDREA PROFETA QUEIROZ disse:

    Maria que carta bela e sensível. Somos as mulheres que nascemos com a intenção do “cuidar” e ao longo dos anos e décadas esse cuidar se expandiu. Não devemos romantizar a vida da mulher moderna mas acolher e minimamente, nos reorganizarmos em nossas relações, para que o lugar de direito da mulher seja concedido e que o equilíbrio do feminino e masculino se sobressaia. Não queremos disputar com os homens, queremos apenas nosso “lugar ao sol”. Todos nós temos nossa porção feminino e masculino e esse equilibrio interno se revela no externo. Feliz dia das mulheres para todas nós da Fórum.

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