Da despropositada e potencialmente danosa ingerência das Agências Reguladoras na liberação dos recursos e dos financiamentos federais alocados aos serviços públicos de saneamento básico | Coluna Saneamento: Novo Marco Legal

26 de maio de 2021

 

Com o objetivo de dar efetividade ao Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico, instituído pela Lei Federal nº 14.026, de 15 de julho de 2020, o Decreto Federal nº 10.588, de 24 de dezembro de 2020 regulamentou o apoio técnico e financeiro de que trata o art. 13 da Lei Federal nº 14.026/2020 e dispôs sobre a alocação de recursos públicos federais e dos financiamentos com recursos da União ou operados por órgãos e entidades da União aos serviços públicos de saneamento básico.

Em relação aos recursos federais, o Decreto Federal nº 10.588/2020 dispõe tanto sobre recursos da União, incluindo recursos geridos por bancos e instituições financeiras federais (como CAIXA, Banco do Brasil e BNDES), quanto sobre os recursos federais operados por órgãos e entidades públicas vinculadas à União, como por exemplo a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), que financia a implantação, a ampliação e/ou as melhorias em sistemas de abastecimento de água nos Municípios com população de até 50.000 habitantes, e o Ministério do Desenvolvimento Regional (que absorveu as competências do Ministério das Cidades), que também financia projetos de saneamento básico com foco em Municípios com população superior a 50.000 habitantes.

O art. 4º, I, alíneas “a” e “b” do Decreto Federal nº 10.588/2020 previu que a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou operados por órgãos e entidades federais ficarão condicionados ao alcance de índices mínimos de desempenho da Concessionária na: (i) gestão técnica, econômica e financeira; (ii) eficiência e eficácia na prestação dos serviços públicos de saneamento básico. Ainda segundo o art. 4º, I, esses índices mínimos deverão ser comprovados por meio de declaração da entidade reguladora, observadas as normas de referência para regulação dos serviços públicos de saneamento básico a serem editadas pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA).

Vê-se, portanto, que o Decreto Federal nº 10.588/2020 inovou ao atribuir às Agências Reguladoras a responsabilidade pela aferição do alcance de índices mínimos relacionados à gestão técnica, econômica, financeira e à eficiência e à eficácia da Concessionária na prestação dos serviços públicos.

Entretanto, o legislador não apontou quaisquer parâmetros que permitam às Agências Reguladoras aferirem esses índices de forma objetiva, uniforme e transparente.

Para além da ausência de quaisquer parâmetros mínimos, o Decreto Federal nº 10.588/2020 utilizou de termos bastante genéricos – como “eficiência”, “eficácia”, “gestão técnica, econômica e financeira” – o que amplia sobremaneira a margem interpretativa das Agências Reguladoras sobre os parâmetros desses índices mínimos a serem alcançados pelas Concessionárias. Portanto, essa prerrogativa concedida às Agências Reguladoras poderá ser potencialmente danosa em situações em que há captura da Agência Reguladora pelo Poder Executivo (Municipal ou Estadual) ou quando o Contrato de Concessão/Contrato de Programa não detalha os índices de qualidade e/ou as metas contratuais. Nesses cenários as Agências Reguladoras poderão exigir das Concessionárias níveis de eficiência, eficácia e de gestão (técnica, econômica e financeira) desnecessários e descolados da concessão e que poderiam até onerar a Concessionária com custos adicionais e não previstos – caso fossem necessários investimentos adicionais para alcançar os índices que a Agência entender como mínimos para liberação do financiamento.

Num cenário ainda mais extremo em que for constatada a falta de independência e de total captura regulatória, essa declaração pode ser utilizada como “poder de barganha” junto à Concessionária para solucionar determinada divergência existente com o Poder Concedente, como por exemplo o pagamento de uma multa que a Concessionária discorda, priorização de investimentos num determinado local em detrimento de outra localidade etc.

Que fique claro que não se está ignorando o Código e as leis penais, a Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92) e a Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013), tampouco se está presumindo má-fé de nenhuma Agência Reguladora, mas há de se considerar esses cenários mais extremos, sobretudo porque segundo levantamento realizado pela ANA, existem no Brasil 63 agências reguladoras municipais, intermunicipais e estaduais que já regulam os serviços de saneamento. Possivelmente nem todas essas Agências, sobretudo as Agências Municipais, são sofisticadas e completamente independentes.

Ainda que não se vislumbre qualquer tipo de captura e que a atuação da Agência Reguladora seja adequada, transparente e com boa-fé, o Decreto Federal nº 10.588/2020 inseriu uma nova atribuição em que talvez seja necessária uma adequação de parte do corpo técnico das agências sem qualquer vantagem clara à Agência Reguladora, ao Banco/Instituição financeira federal financiador, ao órgão repassador de verba federal, ao Poder Concedente, à Concessionária ou ao usuário. Ou seja, a inovação trazida pelo Decreto é despropositada na medida em que a avaliação do risco de crédito é atividade que compõem o core business dos bancos e instituições financeiras. Ainda que todas as Agências Reguladoras adotem critérios objetivos, transparentes e uniformes para aferir a gestão técnica, econômica e financeira, bem como a eficiência e eficácia da Concessionária na prestação dos serviços públicos, dificilmente a declaração emitida pela Agência Reguladora agregará substancialmente na análise dos bancos/instituições financeiras federais e/ou dos órgãos e entidades federais. O risco do projeto é avaliado pela instituição financeira por meio de critérios e regras próprias haja vista o ônus pela avaliação inadequada ser suportado apenas pela instituição financeira.

Ou seja, ao regulamentar um tema que já funcionava adequadamente, o Decreto Federal nº 10.588/2020 inseriu um dificultador adicional na liberação de financiamentos federais às concessões de água e esgoto o que poderá prejudicar sobremaneira o financiamento de inúmeras concessões.

Imagine-se um cenário em que a Agência se recusa em apresentar a declaração, quais seriam as consequências dessa recusa? Como a declaração das Agências Reguladoras vincula a liberação de verbas federais não será possível o financiamento público federal nesse cenário. Na hipótese da declaração apresentada pela Agência apontar o não atingimento dos índices mínimos e a Concessionária discordar, toda esse imbróglio estritamente técnico provavelmente será discutido no âmbito do Poder Judiciário (em muitos casos em pequenas comarcas), sendo que se não for concedida medida liminar ou cautelar, o financiamento da concessão através de verba federal poderá ser prejudicado por período suficiente para causar danos à Concessionária na medida em que as metas, sobretudo de investimentos, serão prejudicadas o que poderá dar origem, inclusive, a um processo de caducidade.

Diante desse cenário, a despeito da evidente boa-fé do legislador e da clara intenção em apresentar mais subsídios aos bancos e instituições públicas federais para permitir uma análise mais precisa e adequada do risco de crédito e do projeto, o Decreto Federal nº 10588/2020 inseriu uma condição ineficaz e potencialmente danosa para liberação de verbas federais às concessões.

Apesar de ser um tema recente e, portanto, pouco discutido, entende-se que se trata de uma inovação negativa na medida em que frustra os anseios do mercado por maior segurança jurídica na prestação dos serviços e pela uniformidade regulatória.

Para mitigar esses efeitos danosos é imprescindível que a ANA aponte critérios objetivos, vinculados, uniformes, transparentes e atrelados às cláusulas contratuais de modo a restringir ao máximo quaisquer análises discricionárias e subjetivas por parte de Agências Reguladoras. Entende-se, inclusive, que esse pode ser um dos temas prioritários e estratégicos a serem considerados pela ANA em sua agenda regulatória para o setor de saneamento básico.

 

Gustavo Rocha Uchiyama  é advogado sênior especialista em infraestrutura no Fialho Salles Advogados.
Iúlian Miranda é mestre em Direito pela UFMG, professor da PUC Minas, advogado sênior especialista em infraestrutura no Fialho Salles Advogados.

 

Aprofunde-se sobre o tema

Quinzenalmente, estudiosos da área contribuem  com reflexões a respeito da Lei Federal nº 14.026/2020 aqui no site da FÓRUM. Para você aprofundar-se ainda mais sobre o tema, os coordenadores desta coluna, Andréa Costa de Vasconcelos, Ana Carolina Hohmann e Bernardo Strobel Guimarães, lançam o livro Novo Marco Legal do Saneamento, disponível na versão impressa e também na versão digital.

A obra dedica-se a examinar o texto legal sob seus diversos aspectos, trazendo olhares múltiplos, na expectativa de que num futuro breve possamos ter um saneamento básico próximo à universalização em território nacional, prestado de modo eficiente e adequado, tal qual propugnado na Constituição da República.

Deixar uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *