Direito Civil na Legalidade Constitucional | Coluna Direito Civil

23 de fevereiro de 2021

 
Paulo Luiz Netto Lôbo
é  Doutor em Direito Civil.
Professor Emérito da UFAL. Líder do Grupo de Pesquisas
“Constitucionalização das Relações Privadas”.

 

 

 

A Constituição estabelece um conjunto de normas jurídicas voltadas à essencialidade das relações privadas existenciais e patrimoniais, com incidência direta e não dependente da interposição do legislador ordinário. A esse conjunto de normas constitucionais tem-se atribuído igualmente a denominação de legalidade constitucional, integrante da totalidade do ordenamento jurídico, mas com supremacia sobre as demais normas, incluindo a codificação civil.

O direito civil deve ser compreendido e aplicado nas situações concretas em permanente interlocução e conformidade com a legalidade constitucional. Supera-se a metodologia tradicional de isolamento do sistema de direito civil, para o qual a ordem constitucional é a ele estranha. Portanto, o direito civil constitucional não pode ser entendido como disciplina distinta do direito civil, porque não é disciplina própria ou autônoma, mas sim metodologia que o integra ao sistema jurídico que tem a Constituição como sua fonte normativa primeira.

O direito civil e sua necessária interlocução com a legalidade constitucional foram inevitáveis que se desenvolvessem no Brasil, máxime após a Constituição de 1988, que restaurou a ordem democrática no país e remodelou o Estado social. Temos sustentado, de acordo com os ensinamentos de Paulo Bonavides e de Nelson Saldanha, que o Estado social ou do bem-estar social é a terceira e atual etapa do Estado Moderno.  Sob o ponto de vista do direito privado, o Estado social, hegemônico em quase todos os países desde o fim da Primeira Guerra Mundial, caracteriza-se pela incorporação, nas constituições, da ordem econômica e da ordem social, que estabelecem os fundamentos, os conteúdos essenciais e os limites da legalidade infraconstitucional das relações privadas, para além do constitucionalismo liberal oitocentista, que se conteve na organização política e nas garantias das liberdades públicas.

O Estado liberal oitocentista voltou-se essencialmente ao controle do poder político; o Estado social agregou a este o controle dos poderes privados. Apesar da reação conservadora e individualista a partir dos anos 1980, com a denominação de neoliberalismo, o Estado social manteve-se na sua essência, sob a perspectiva do direito privado, pois permanecem tanto a ordem econômica constitucional, quanto a ordem social constitucional, apesar de políticas públicas contraditórias. Reafirmamos que, sob o ponto de vista do direito privado, enquanto houver ordem econômica e social constitucional, haverá Estado social; enquanto houver Estado social, haverá constitucionalização do direito civil, que atrai necessariamente a metodologia civil constitucional.

Antes da atual Constituição brasileira, várias obras e estudos civilísticos já apontavam para a necessidade da interlocução com a Constituição. Clóvis Beviláqua, por exemplo, publicou trabalho nessa direção logo após o advento da Constituição de 1934, que inaugurou o Estado social no Brasil, que se manteve até mesmo nas Constituições autocráticas de 1937 e 1967-1969, ao menos em seu arcabouço normativo.

Também antes da Constituição de 1988, diversos civilistas brasileiros, inconformados com a paralisia do direito civil – principalmente na legislação, mas igualmente na doutrina – ante as mudanças sociais que despontaram ao longo do século XX, máxime após o final dos anos 1960, buscaram nas ideias e nos valores motores do constitucionalismo moderno, a revitalização da disciplina. De nossa parte, publicamos em 1983 a obra “Do contrato no Estado social”, demonstrando a insuficiência da dogmática civil tradicional, vincada nos valores da sociedade agrária do fim do século XIX, que despontaram no Código Civil de 1916, e a necessidade de reorientação do direito contratual segundo o estalão do constitucionalismo social, ainda que não referíssemos à constituição existente à época, imposta pela ditadura militar.

O direito civil na legalidade constitucional, não dá as costas à milenar elaboração das categorias do direito civil. Muito ao contrário. História e contemporaneidade são imprescindíveis para a compreensão do direito civil. E é a história que nos orienta quanto à evolução por que passou o Estado moderno, nas três etapas vivenciadas até o momento atual: a do Estado absoluto, a do Estado liberal e a do Estado social. Essas três etapas impactaram na mesma medida no direito civil, quase a expressar os três momentos da dialética hegeliana, ou seja, a tese, a antítese e a síntese. No Estado absoluto, o direito civil emanava da vontade do soberano, do qual derivava também a constituição política, submetendo-se ao interesse público estatal; no Estado liberal, o direito civil converte-se em constituição do homem comum burguês, em paralelo e quase sempre em oposição à ordem constitucional, que dele não tratava, orientando-se pelo interesse privado hegemônico; no Estado social, o direito civil é, ao mesmo tempo, ordem das relações privadas e integrante da ordem constitucional, conjugando interesse privado e interesse público. Nessa linha evolutiva é que vamos encontrar o equilíbrio virtuoso entre a dignidade da pessoa humana e a solidariedade social.

A longa história do direito civil brasileiro, como fruto do sistema jurídico romano germânico, é enriquecida com os rumos que tomou na contemporaneidade, ao lado dos sistemas nacionais de direito civil dos países de nosso trato cultural comum, notadamente os da Europa continental e os da América Latina. Em todos eles, a constitucionalização das relações privadas é realidade reconhecida ou subjacente na doutrina e na jurisprudência.

Os que negam a evidência da constitucionalização do direito civil e da imprescindibilidade da construção doutrinária, que resultou na metodologia civil constitucional, deixam-se levar por juízos de valor subjetivo, como se a história do direito civil tivesse encerrado sua trajetória nas grandes codificações burguesas do liberalismo oitocentista. Essa orientação tradicionalista é contraditória com o curso da história, que alegam prezar, pois as grandes codificações intentaram romper com a tradição romanística e com o direito costumeiro, rompendo com o passado.

A correta interpretação do direito civil brasileiro, portanto, há de partir de sua historicidade e dos fundamentos estabelecidos na Constituição para aplicação das normas infraconstitucionais. Os civilistas, mais que os constitucionalistas, contribuíram para afirmar, como ponto de partida, a força normativa das regras constitucionais, incluindo seus princípios, e bem assim suas incidências diretas, tanto quando o legislador ordinário for omisso, quanto para atribuir sentido à legislação infraconstitucional. Cumpre realçar que os Tribunais, com relevo para o Supremo Tribunal Federal, tiveram e têm papel relevante nessa correta direção hermenêutica, contribuindo para que o direito civil seja direito de todos os brasileiros e não apenas da parcela detentora de patrimônio. Situar a pessoa humana no centro do direito civil e considerar que o patrimônio deve ser orientado a sua realização existencial, sem a primazia que a dogmática tradicional a ele atribuía, tem sido um dos postulados mais importantes da metodologia civil constitucional.

 

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