É lícito à União eventualmente inviabilizar a execução dos atuais contratos de saneamento por parte de estatais dos entes subnacionais através de decreto regulamentar? | Coluna Saneamento: Novo Marco Legal

12 de maio de 2021

Aldem Johnston
é pós-graduado em direito público,
membro da Comissão de Direito à Infraestrutura da OAB/PE,
advogado em Mello Pimentel Advocacia.

 

A Lei nº 14.026/2020 introduziu na Lei nº 11.445/2007 um art. 10-B cuja redação estabelece que “os contratos em vigor, incluídos aditivos e renovações, autorizados nos termos desta Lei, bem como aqueles provenientes de licitação para prestação ou concessão dos serviços públicos de saneamento básico, estarão condicionados à comprovação da capacidade econômico-financeira da contratada, por recursos próprios ou por contratação de dívida, com vistas a viabilizar a universalização dos serviços na área licitada até 31 de dezembro de 2033, nos termos do § 2º do art. 11-B desta Lei”.

No parágrafo único do citado dispositivo foi estabelecido que a “metodologia para comprovação da capacidade econômico-financeira da contratada será regulamentada por decreto do Poder Executivo no prazo de 90 (noventa) dias”.

O aludido decreto ainda não foi editado.

Especula-se[1] que com a edição deste decreto, as regras nele contidas farão com que 10 empresas estaduais da área de saneamento não consigam atender ao art. 10-B da Lei nº 11.445/2007 por impossibilidade de comprovação de capacidade econômico-financeira.

Assim, em última análise, um ato infralegal da União impedirá que empresas estatais de entes subnacionais exerçam suas atividades?

Ora, a rigor, teria este futuro regulamento tal poder?

Bom, na lição de Geraldo Ataliba[2], “será inconstitucional o regulamento que pretenda inserir-se entre a lei e a autoridade ou agente estadual e municipal, ainda que se trate de lei do Congresso. Porque, das duas uma: ou será lei simplesmente federal – que pode ser objeto de regulamentação – que não é obrigatória para Estados e Municípios, ou se trata de lei nacional. Neste último caso, uma regulamentação só pode ser precedida por ato normativo – lei ou decreto – estadual ou municipal, sem tolerar interferência do Presidente da República ou de quem quer que seja. Isto, por faltar ao regulamento o pressuposto de se tratar de lei que cabe ao Presidente executar. É que o Presidente só tem competência na esfera das leis da União e, nesta, no âmbito Executivo, em matérias executivas e administrativas, na forma da lei.”

Ademais, há de se registrar que é preciso refletir, à luz do preceito de que tempus regit actum, se o Novo Marco Legal do Saneamento e os seus eventuais decretos regulamentadores terão o condão de modificar relações contratuais havidas entre as empresas públicas e sociedades de economia mista estaduais e os municípios, uma vez que o STF[3] já decidiu que “os contratos submetem-se, quanto ao seu estatuto de regência, ao ordenamento normativo vigente à época de sua celebração. Mesmo os efeitos futuros oriundos de contratos anteriormente celebrados não se expõem ao domínio normativo de leis supervenientes. As consequências jurídicas que emergem de um ajuste negocial válido são regidas pela legislação em vigor no momento de sua pactuação. Os contratos – que se qualificam como atos jurídicos perfeitos – acham-se protegidos, em sua integralidade, inclusive quanto aos efeitos futuros, pela norma de salvaguarda constante do art. 5°, XXXVI, da Constituição da República.”

Como se percebe, é muito pouco provável que o futuro decreto regulamentador do art. 10-B da Lei nº 11.445/2007 seja recepcionado sem polêmicas e sem contestação.

[1] https://www.youtube.com/watch?v=aEdhws55nxg&t=2366s, acesso em 06/05/2021.
[2] Ataliba, Geraldo, Decreto Regulamentar no Sistema Brasileiro, Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, 11: 21-85, jul/set., 1980, pág. 27, disponível em bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/download/32548/31364, acesso em 16/05/2019
[3] RE 204769 RS, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 10/12/1996, Primeira Turma, Data de Publicação: DJ 14-03-1997

 

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