Interpretação de contratos de concessão em situações de incerteza: algumas propostas | Coluna Direito da Infraestrutura

13 de agosto de 2020

O regime jurídico dos contratos de concessão no direito brasileiro foi forjado com base em concepções doutrinárias atreladas a um regime jurídico-administrativo, lastreado em conceitos abstratos, tais como o de prestação de um “serviço adequado” e de manutenção “do equilíbrio econômico-financeiro”. Tais vertentes tinham a pretensão de disciplinar uma espécie de contrato completo, no qual a sua alteração estaria ligada à cambialidade dos serviços por eles veiculados. Essa vertente desconsidera premissas básicas, que são inerentes a tais ajustes: (i) a de que os agentes são, parcialmente, racionais na celebração de contratos de concessão (bound rationality); e (ii) que há uma elevada assimetria de informações entre o regulador e o concessionário.

Tal assimetria de informações tem lugar, na medida em que a concessionária dispõe de mais informações a propósito dos próprios negócios (no que toca ao volume demanda, custos fixos e variáveis, dentre outras). Razão pela qual o Regulador não consegue prever, com segurança, como a contraparte se portará durante a celebração e a execução dos contratos de concessão. É dizer, ainda que a contraparte revele determinadas informações (no âmbito do procedimento licitatório, por exemplo), isso não importa dizer que todas essas informações serão absorvidas e compreendidas pelo Regulador. Cuida-se de racional que poderá importar na prática de condutas oportunistas, pelo detentor das informações, valendo-se delas para extrair renda de tal vantagem (informational rent)[1]. Todo esse racional resulta na constatação econômica de que os contratos concessão são incompletos[2].

Nessa qualidade (de contratos incompletos), os contratos de concessão predicam de um regime interpretativo que lhe seja adequado, especialmente na hipótese de se materializar um evento caracterizado como uma “incerteza[3]”. Nesse quadrante, tenho que o Código Civil, que disciplina a Teoria Geral dos Contratos, estabelece diretrizes interpretativas que podem ser endereças à interpretação de contratos complexos (de que são exemplos os contratos de concessão), sobretudo a partir da vigência da Lei n° 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica), pois que este estatuto veiculou um sistema interpretativo de contratos incompletos.

Nesse sentido, o art. 113 do Código Civil – CC, alterado pelo novel diploma, dispõe que os contratos devem ser interpretados no sentido do que: (i) for confirmado pelo comportamento das partes posteriormente à celebração do negócio; (ii) corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio; (iii) corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração (incisos I, IV e V). O §2° do dispositivo prescreve, ainda, que “ As partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei”.

O art. 421-A do Código Civil (incluído pela Lei n° 13.874/2019), por sua vez, estabelece que (i) as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução; (i) a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e (iii) a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada (incisos I, II e III).

Daí que a primeira diretriz que se depreende da interpretação conjugada dos dispositivos é a que os contratos devem respeitar o que foi razoavelmente previsto pelas partes, o que inclui o desenho e a precificação de sua matriz de riscos, considerando as condições disponíveis quando de sua celebração. A segunda vai no sentido de que as partes, por intermédio de posturas colaborativas, devem endereçar soluções para a colmatação de lacunas contratuais. A terceira traz a orientação no sentido de que, em razão das assimetrias de informações, caberá, primordialmente, às partes, e não a um terceiro (juiz ou árbitro), propor um regime de renegociação dos contratos.

Também não se poderá ignorar, na interpretação dos contratos de concessão em situações de incerteza, as diretrizes consequencialistas trazidas pela Lei n° 13.655/2018 (LINDB). Nesse sentido, terá lugar a aplicação do disposto nos arts. 20, 21 e 22[4], caput, da Lei n° 13.655/2018 (LINDB). Isso porque os contratos de concessão veiculam serviços essenciais à população. Razão pela qual sua interpretação predica de uma avaliação sobre os riscos de soluções de continuidade para os serviços públicos. Ademais disso, não se pode olvidar que os contratos de concessão são celebrados em ambientes regulados. Daí que, tendo em vista o sistema de regulação setorial, o interprete deverá considerar os impactos, holísticos e sistêmicos, de eventual renegociação ou interpretar sua matriz de riscos à luz de uma visão prospectiva (foward-looking) para todo o setor regulado.

Nesse quadrante, a proposta veiculada neste artigo é a de que interpretação dos contratos de concessão, em situações de incerteza, se valha do disposto no Código Civil (alterado pela Lei da Liberdade Econômica) e na LINDB, de modo que se observe: (i) o disposto na matriz de riscos dos contratos de concessão; (ii) o provisionamento de tais riscos no Plano de Negócios apresentado pelo concessionário, ou no EVTEA, apresentando pelo poder público, a depender da vinculação de cada qual, para fins de reequilíbrio; (iii) soluções que priorizem a renegociação das suas bases objetivas, a serem conduzidas pelas partes, e não por terceiros; (iv) os aspectos consequencialistas trazidos pela Lei n° 13.655/2018 (LINDB), uma vez que os contratos de concessão veiculam serviços essenciais à população.

 

[1] V. NÓBREGA, Marcos. Direito e Economia da Infraestrutura. Belo Horizonte: Fórum, 2020.

[2] MACNEIL, Ian. The many future of contracts. South California Law Review, vol. 47, p. 691-816, 1973- 1974, p. 720. HART, Oliver. Incomplete Contracts and Public Ownership: Remarks, and the Application to Public-Private Partnerships. Harvard. The Economic Journal, v. 113, n. 486, Conference Papers (Mar., 2003)

[3] Os riscos são precificáveis, quando da estruturação do projeto, enquanto as incertezas se encontram alheias ao campo de visão das partes e do regulador. DIZIKES, Peter. Explained: Knightian uncertainty. MIT NEWS, 2010. Disponível em: <http://news.mit.edu/2010/explained-knightian-0602>. Acesso em 22 jul. 2020.

[4] “Art. 20 . Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.”

“ Art. 21. A decisão que, nas esferas administrativas, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas

“ Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.

 

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