Justiça e Tecnologia: quais os impactos nos espaços judiciários? | Coluna Direito Civil

16 de novembro de 2022

Coluna Direito Civil

Os edifícios dos tribunais, por meio de suas arquiteturas particulares, e como edifícios públicos que são vistos e vividos por públicos diversificados, fornecem não só um espaço para o funcionamento da justiça, mas ajudaram a definir um cenário simbólico e ritualístico através do qual as pessoas experienciam a autoridade judicial como instituição e poder, com uma forte relação com a história, a política, a economia, e a cultura de cada país – na qual também se entende a cultura jurídica e judiciária[1].

Nas últimas duas décadas, a transformação digital do sistema de justiça assumiu-se como uma preocupação central das políticas públicas de administração da justiça de vários governos, seja na Europa, nos Estados Unidos ou no Brasil, e um elemento-chave da modernização dos sistemas judiciais, sobretudo com o objetivo de melhorar o desempenho dos tribunais ao nível da eficiência, da celeridade e da carga processual. Mas foi com a irrupção da pandemia Covid-19[2] no início de 2020  que assistimos a um incremento do uso das ferramentas de trabalho virtuais, com recurso ao teletrabalho, aumento das videoconferências, bem como à disponibilização de plataformas online para os tribunais realizarem virtualmente as diligências e os julgamentos[3].

Como sabemos, a transformação digital da justiça não implica somente alterações e adaptações ao nível da tecnologia, implicando também mudanças institucionais, organizacionais e normativas. Desde a década de 1990 que vários autores e autoras[4] têm vindo a discutir a transformação digital e a virtualização da justiça, apontando os seus potenciais aspectos positivos e negativos. Entre os positivos contam-se a eficiência e celeridade dos tempos processuais e, por conseguinte, dos tribunais; a proteção de partes e de testemunhas vulneráveis; a facilitação da participação das comunidades distantes ou remotas. Em termos dos aspectos negativos fala-se dos impatos produzidos nos princípios da imediação e da publicidade das audiências, dos problemas relativos a segurança e privacidade, das ineficiências/falhas dos sistemas tecnológicos, no stress das infraestruturas (edifícios e tecnologias), da perda de simbolismo e de formalismo do espaço judiciário. Como refere Kitzinger[5], toda a formalidade da arquitetura e da sala de audiências, que muitas vezes é vista como intimidante, pode ser vista também como um fator de garantia, de imparcialidade e da seriedade do caso, o que se poderá perder quando a audiência é feita através de plataforma digital, transmitindo às partes a sensação de estarem perante uma justiça de segunda classe, onde os usuários se sentem invisíveis dentro de diversos quadradinhos na tela do computador.

A estes aspectos juntam-se questões de iliteracia e de exclusão ou gap digital (no Brasil são 46 milhões as pessoas sem acesso à internet, nos Estados Unidos o número é semelhante, já para não falar de quem tem acesso a um computador ou até mesmo a um celular)[6], intimamente relacionadas com questões geográficas (com grandes distâncias e diferenças entre comunidades, rurais e urbanas, e (in)existência de infraestruras adequadas) e com questões socioeconómicas, produtoras ou potenciadoras de desigualdades e de vulnerabilidades sociais, e assim com questões de acesso à justiça. Atendendo, para além disso, aos contextos em que vivemos atualmente, de forte pressão energética, intimamente ligada a uma forte pressão ambiental, onde cada vez mais se experienciarão situações de pandemias intermitentes[7] e a continuidade de regras sanitárias, em sociedades fortemente envelhecidas (como é o caso europeu), o que acentua as desigualdades e vulnerabilidades sociais mencionadas.

Importa, pois, refletir sobre as consequências que este processo de transformação digital em curso teve e terá sobre os edifícios dos tribunais, em particular a importância do edifício físico do tribunal para o sistema judicial. Continuaremos a necessitar de tribunais físicos? Iremos continuar a construir tribunais? Para quê, com que forma, e a pensar em quem (tipo de usuários)?

A realização de videoconferências e o uso de plataformas digitais, com criação de salas de audiência virtuais, tornaram-se, nestes dois últimos anos, prática corrente. Nas Filipinas, aliás, o Chief-Justice Gesmundo anunciou, em setembro de 2022, que todos os processos judiciais se irão realizar por videoconferência mesmo após o fim da pandemia[8]. Mas mais do que a utilização de videoconferências, é a realização de audiências no metaverso, tal como aconteceu em setembro de 2022 no Brasil, onde a Justiça Federal na Paraíba[9] realizou a primeira audiência real em ambiente virtual imersivo e hiper-realista, que começa a dar passos (uns meses antes a vara do trabalho Colíder, do Tribunal Regional do Trabalho da 23.ª Região, havia criado uma versão virtual no metaverso[10]).

A promessa dos ambientes virtuais no metaverso é a de uma maior interação, sensorial, capaz de reduzir distâncias e de otimizar o tempo. Mas: e quais poderão ser os contras? Há que pensar, em particular, na desterritorialização da justiça provocada pela virtualização, e no impacto produzido nos mapas judiciais, como também na questão da permanência do teletrabalho (magistrados e servidores de justiça). Qual será o tipo de relação do tribunal com o contexto social local, com o contexto do conflito, com a própria comunidade, que se virá a criar?

Se se entende que o ambiente virtual, criado pelas videoconferências, videolinks ou pelo metaverso, não substituirá ou acabará com os ambientes físicos, é preciso considerar como se fará a articulação entre offline e online. Susskind[11] refere que iremos ter tribunais híbridos, um misto entre presencial e virtual. Mas até agora os autores e as autoras são omissos quanto à forma como se fará a articulação ou interoperabilidade entre o tribunal físico e o tribunal virtual (implicando plataformas virtuais e/ou o metaverso), já que tal implicará mudanças processuais radicais, que terão de determinar e estabelecer os critérios através dos quais serão atribuídas as causas a uns (presenciais) e a outros (virtuais), e como será respeitado o princípio da imediação, da publicidade, e garantida a segurança de dados sensíveis (entre os quais os biométricos), em contextos de restrição de custos e de aumento de cargas processuais[12]. Para além disso, serão os tribunais do metaverso meras reproduções 3.0 dos edifícios físicos, com todos os seus problemas e desgastes estruturais e arquiteturais? Ou poderá o metaverso auxiliar a melhorar os edifícios físicos?

Por outro lado, nesta articulação híbrida entre tribunal presencial e tribunal virtual há que considerar que efeitos tudo isto produz ao nível da construção e da adaptação de edifícios, em particular na arquitetura – volumetria, quantidade de salas e de gabinetes necessários, organização e flexibilização interna e externa dos edifícios, e interlocução com plataformas e instrumentos digitais. Além disso, e considerando as discrepâncias territoriais internas dos diferentes países, como referido, e de modo a garantir o acesso à justiça, será necessário implementar, neste conceito de justiça híbrida, uma articulação entre espaço físico construído (edifícios), plataformas virtuais e pontos itinerantes de justiça[13], como ônibus, barcos ou quiosques, capazes de reduzir o gap judiciário e digital[14].

Durante séculos, houve a exigência de que o tribunal fosse constituído num local fixo, ou seja, num edifício determinado. Mas como escreveu Camões, ‘Todo o mundo é composto de mudança,/Tomando sempre novas qualidades’. Tal significa reconhecer a necessidade de um novo e genuíno compromisso radical para tentar criar uma justiça mais próxima, o que envolve arquitetura e tecnologia.

 


Patrícia Branco é investigadora
do Centro de Estudos Sociais
da Universidade de Coimbra,
Portugal.

 

Notas
[1] Cordido, M. T. R. L. de B.. Arquitetura forense do Estado de São Paulo: produção moderna, antecedentes e significados. Dissertação (Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo), Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo, 343p., 2007; Goodrich, P.. Visive powers: colours, trees and genres of jurisdiction. Law and Humanities, 2, 2, p. 213-231, 2008. Lucien, A.. Staging and the imaginary institution of the judge. International Journal for the Semiotics of Law, 23, 2, p. 185-206, 2010.
[2] Sobre as medidas implementadas no Brasil e em Portugal ver Branco, P. e Patterson, C.. Justiça e Tecnologia: é necessária uma nova identidade para a arquitetura forense?, in Marcos Ehrhardt Júnior, Marcos Catalan e Pablo Malheiros (org.), Direito Civil e Tecnologia. Tomo II. Belo Horizonte: Fórum, p. 127-139, 2021.
[3] Contini, F.; Lanzara, G. F. (eds.). Building Interoperability for European Civil Proceedings Online. Bolonha: CLUEB, 2013; Fernando, P.. Intertwining Judicial Reforms and the Use of ICT in Courts: A Brief Description of the Portuguese Experience.  European Quarterly of Political Attitudes and Mentalities, 8, 2, p. 7-20, 2019.
[4] Branco, P.. The geographies of justice in Portugal: redefining the judiciary’s territories. International Journal of Law in Context, 15, 4, p. 442-460, 2019; Marks, A. (ed.). What is a Court? A Report by JUSTICE. Disponível em:  https://justice.org.uk/what-is-a-court/. Acesso em: 17 maio 2021; Mohr, R.; Contini, F..Reassembling the legal: the wonders of modern science in court-related proceedings. Griffith Law Review, 20, 4, p. 994-1019, 2011; Mulcahy, L.. The unbearable lightness of being? Shifts towards the virtual trial. Journal of Law and Society, 35, 4, p. 464-489, 2008; Rowden, E., Wallace,A.. Remote judging: the impact of video links on the image and the role of the judge. International Journal of Law in Context, 14, p. 504‑524, 2018; Susskind, R.. The future of Courts. Remote Courts. Disponível em: https://thepractice.law.harvard.edu/article/the-future-of-courts/. Acesso em: 17 maio 2021.
[5] Kitzinger, C.. Remote justice: a family perspective. Disponível em:  https://www.transparencyproject.org.uk/remote-justice-a-family-perspective/#:~:text=The%20term%20%E2%80%9Cremote%20justice%E2%80%9D%20makes,when%20their%20camera%20is%20off. Acesso em: 17 maio 2021.
[6] Cf. https://news.bloomberglaw.com/us-law-week/rural-digital-divide-complicates-virtual-court-participation. Acesso em: 10 outubro 2022; https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/artigos-discursos-e-entrevistas/artigos/2020/o-acesso-2013-digital-2013-a-justica-a-imagem-do-judiciario-brasileiro-e-a-prestacao-jurisdicional-nos-novos-tempos. Acesso em: 10 outubro 2022.
[7] Santos, B. de S.. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina, 2020.
[8] Cf. https://mb.com.ph/2022/09/10/soon-all-court-proceedings-will-be-onlinethru-video-conferencing-cj-gesmundo/. Acesso em: 10 outubro 2022.
[9] Cf. https://www.cnj.jus.br/justica-federal-na-paraiba-realiza-primeira-audiencia-real-do-brasil-no-metaverso/. Acesso em: 10 outubro 2022.
[10] Cf. https://www.youtube.com/watch?v=rih08T28DSI. Acesso em: 10 outubro 2022.
[11] Susskind, R.. The future of Courts. Remote Courts. Disponível em: https://thepractice.law.harvard.edu/article/the-future-of-courts/. Acesso em: 17 maio 2021.
[12] Cf. https://cloudblogs.microsoft.com/industry-blog/government/2022/06/14/the-new-world-of-court-proceedings-requires-new-set-of-digital-tools/. Acesso em: 10 outubro 2022.
[13] Ver o relatório do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Democratização do acesso à justiça e efetivação de direitos : justiça itinerante no Brasil. In http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/7492/1/RP_Democrratiza%c3%a7%c3%a3o_2015.pdf. Acesso em: 10 outubro 2022.
[14] Cf. https://news.bloomberglaw.com/us-law-week/rural-digital-divide-complicates-virtual-court-participation. Acesso em: 10 outubro 2022.

Deixar uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *