A nova formação de preços no setor de saneamento: a onda de reformas das estruturas tarifárias das companhias estaduais de água e esgoto | Coluna Direito da Infraestrutura

28 de julho de 2022

 

O atendimento das metas de universalização dos Serviços de Água e Esgoto (USAE), de que trata o art. 11-B trazido pela Lei n°14.026/2020 (Novo Marco Regulatório do Setor de Saneamento), depende, prioritariamente, da capacidade de financiamento dos investimentos que terão de ser realizados por operadores públicos e privados. Nada obstante, não tratamos, neste artigo, da captação dos empréstimos e do equity que são, tipicamente, servientes à aquisição dos bens de capital necessários à implementação de tais objetivos (obtidos, intermédio da celebração de mútuos com financiadores públicos e privados), mas do necessário equilíbrio entre sustentabilidade econômica-financeira do projeto (art. 29 da Lei n°11.445/2007), a capacidade de pagamento dos usuários e o limite para alocação de recursos orçamentários (art. 31, II, da Lei n°11.445/2007).

De fato, esses investimentos serão, integralmente, financiados, ou melhor, pagos, por dois “bolsos”: o dos usuários (tarifas) e/ou dos contribuintes (recursos orçamentários ou não onerosos). Assim é que, considerando a costumeira escassez de recursos públicos, passa-se a buscar soluções regulatórias para compatibilizar as metas de universalização trazidas, pelo Novo Marco Regulatório, com os regimes tarifários existentes, sobretudo os até então implementados, pelos operadores históricos (Companhia Estaduais de Saneamento – CESBs). É que o estabelecimento de novas arquiteturas tarifárias, para além de fazer frente ao atendimento das novas obrigações de investimento, poderá facilitar a captação de recursos exógenos ao projeto junto aos ofertantes de fundos de terceiros (debt) e mesmo próprios (equity).

Acontece que, ao se analisar as formas atuais de financiamento tarifário praticadas, por companhias estaduais de água e esgoto, se constatam inadequações das tabelas de cobrança dos serviços prestados aos usuários, sob os aspectos de eficiência econômica, ambiental e de justiça social. Tomando como universo de análise, especificamente, o universo de amostra das Companhias Estaduais de Saneamento Básico (CESBs), o que se verifica é que as estruturas legadas do PLANASA ainda são predominantes, apesar das iniciativas de reforma hoje verificadas. É dizer, as tabelas tarifárias cinquentenárias, hoje praticadas, por muitas CESBs, contêm subsídios (cruzados e ocultos), que não beneficiam os usuários hipossuficientes, transferindo recursos de usuários mais carentes para usuários com elevada capacidade contributiva. Para além disso, tal estruturação de custos não oferece os melhores incentivos ao uso racional do principal insumo do sistema, o recurso hídrico. Desconsidera, pois, a função regulatória da estruturação tarifária.

Cuidam-se de salientes entraves à universalização alvitrada pelo Novo Marco Regulatório, já que umas das formas possíveis de se captar novos recursos para tal desiderato passa, justamente, pela necessidade de se explorar a capacidade contributiva de muitos indivíduos, de renda média e alta, que poderiam estar mais engajados no esforço de universalização. Nesse sentido, a Pezco Economics construiu, recentemente, um panorama dos processos de mudança tarifária entre as companhias estaduais de saneamento básico no Brasil. O resultado, que pode ser visto na tabela a seguir, mostra a prevalência do modelo de Blocos Crescentes de Tarifas (BCC), ou Incresing Block Tariffs (IBT), que prevalece em todo o mundo em desenvolvimento:

Fonte: pesquisa e elaboração Pezco Economics

O gráfico a seguir aponta o resumo do status atual das reformas de estrutura tarifária entre as CESBs.

Como se pode depreender, o consumo mínimo faturável é uns dos aspectos tradicionais das estruturas tarifárias, legadas pelo PLANASA, incluindo uma faixa típica de consumo mínimo de água, com valor modal igual a 10m3. Este padrão começa a ser alterado (ou suprimidos), por operadores públicos e privados. Assim, por exemplo, cite-se a COPASA ou a BRK Saneatins, que já endereçam alterações nesse sentido.

Nada obstante, o cardápio de possibilidades de mudança nas estruturas tarifárias inclui diversos elementos. Um dos principais vetores de reforma é a introdução da tarifa binômia, eliminando o consumo mínimo tipicamente praticado. A nova tarifa em duas partes em geral se volta à consideração mais explícita da cobertura do custo dos bens de capital alocados à prestação dos serviços. Além disso, outros vetores de reforma estão sendo identificados, como a tarifação por ligações em vez de economias e a introdução de tarifa de uso coletivo.

Alguns vetores desta reforma já vêm sendo introduzidos, mesmo no ambiente das estruturas tarifárias legadas do PLANASA, sendo o principal deles, já bastante difundido, a prática de tarifas sociais e tarifas populares, com critérios que vêm evoluindo ao longo do tempo. Outro elemento de reforma pontual tem sido o tratamento diferenciado de grandes clientes, que apresentam, tipicamente, elasticidades-preço da demanda (em módulo) bem mais altas que os de menor consumo. O tema dos grandes clientes se relaciona às próprias questões de competitividade das economias afetadas pelos serviços de saneamento, já que o abastecimento de água e o tratamento de esgotos ou efluentes constitui insumo importante de várias atividades relevantes às economias regionais. Em alguns casos, o tratamento diferenciado se verifica até mesmo em clientes de menor porte, que atendem segmentos comerciais ou industriais.

O tema da reforma da estrutura tarifária está, portanto, no centro dos esforços de implementação do Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico, que prevê a universalização até o ano de 2033, com permissão pontual à dilação de prazo somente em casos em que mesmo a regionalização não gere viabilidade para a USAE. É preciso, porém, avançar neste tema em todo o país, para a viabilização dos recursos que vão gerar as fontes internas de financiamento necessárias à ampliação do atendimento nos termos pretendidos pela nova legislação.

Não obstante a sua relevância, o assunto de estruturas tarifárias é bastante complexo e tem sido tratado na literatura técnica e acadêmica internacional, permanecendo várias lacunas de conhecimento para aplicação a casos específicos. As abordagens científicas sobre o assunto não são consensuais e, hoje, a construção de uma nova estrutura tarifária depende de experimentos cujo resultado envolve alguma margem de incerteza. Um exemplo da complexidade envolvida pode ser encontrado no setor elétrico nacional. A Nota Técnica nº 296/2021-SGT-SPE/ANEEL, de 13 de dezembro de 2021, definiu a concepção da proposta de governança dos Sandboxes Tarifários, por meio da experimentação prática em ambiente controlado, ou seja, realizando projetos-pilotos de tarifas aplicadas aos consumidores.

O setor de saneamento também experimenta mudanças no comportamento do consumidor, notadamente no período pós-pandemia, as quais se intensificam com a introdução de novas tecnologias – ainda que em ritmo mais moderado frente ao que ocorre no setor elétrico. Dessa forma, a experiência recente do setor elétrico evidencia a complexidade da questão, a partir da ideia de que, no setor elétrico, o assunto vem sendo endereçado, por intermédio da experimentação prática junto a grupos de consumidores de baixa tensão. Ainda que, no setor de saneamento, não se tenha como prática prever a realização de sandbox ou de aplicação piloto dos novos procedimentos tarifários, sem investidas de revisão das estruturas tarifárias vigentes, a meta de universalização pode ficar ainda mais distante.

 

Frederico Turolla
É Doutor e Mestre em Economia de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas – SP (2005, 1999), com intercâmbio em International Economics and Finance pela Brandeis University.
Rafael Véras
É Professor do LLM em Infraestrutura e Regulação da FGV Direito Rio. Doutorando e Mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.

 

 

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