O direito ao contraditório na intervenção nas concessões

29 de março de 2022

Ilustração sobre contrato de concessões

Em 16 de março de 2022,  a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) se manifestou no sentido de que é prescindível o exercício do contraditório prévio à decretação de intervenção, em contratos de concessão de serviço público. De acordo com o relator, em se tratando de intervenção, o direito de defesa do concessionário só é conferido após a decretação da medida, a partir do momento em que for instaurado o procedimento administrativo para apurar possíveis irregularidades, porquanto “a intervenção possui finalidades investigatória e fiscalizatória, e não punitivas”.  Ainda de acordo com relator “A intervenção no contrato de concessão constitui um dever e uma prerrogativa de que dispõe o poder concedente, visando assegurar a adequação na prestação do serviço público, bem como o fiel cumprimento das normas contratuais, regulamentares e legais pertinentes”. 

Tal entendimento, de forma abstrata (insulando-se as peculiaridades do caso concreto), não me parece o mais adequado. É que a intervenção é um expediente do qual se vale o poder concedente para se substituir, provisoriamente, ao concessionário, na exploração de um serviço público que lhe foi delegado. Nesse qualidade, importa em uma inequívoca restrição de direitos, mais precisamente, do plexo de direitos que restaram trespassados ao patrimônio do concessionário, a partir da celebração do pacto concessório(v.g. aferir tarifas, explorar receitas extraordinárias, amortizar investimentos em bens reversíveis, no âmbito da vigência do contrato). 

Para além disso, não se pode desconsiderar que o decreto interventivo ostenta natureza jurídica de ato administrativo. Nessa qualidade, especialmente, a partir da processualização e da democratização da atividade administrativa, não há que se admitir que o exercício do poder extroverso seja levado a efeito, de forma unilateral, verticalizada. Razão pela qual estou de acordo – como, cada vez mais, vem acontecendo – com as precisas lições de Floriano de Azevedo Marques Neto, segundo as quais  a diretriz da processualidade resultou em três consequências, a confrontar o ato administrativo: (i) o percurso de edição do ato administrativo torna-se permeável aos interesses dos administrados potencialmente colhidos por seus efeitos; (ii) o agir administrativo não poderá ser referenciado apenas nas balizas editadas ex ante (fundamento legal), tornando-se necessária também a consideração de um olhar  prospectivo (forward-looking), mediante a ponderação de impactos, comparação de alternativas, fundamentação de escolhas; e (iii) terá lugar a ampliação do controle da Administração Pública, por meio da redução da discricionariedade administrativa.

Ademais, não se pode descurar da assimetria de informações existente entre o Poder Concedente e o Concessionário.  Nesse quadrante, de acordo com Oliver Willianson, o risco moral diz com “a falha dos segurados em se comportar de forma plenamente responsável e executar as ações mitigatórias de problemas de execução ex post”. Assim é que, a seu ver, “o oportunismo se refere à revelação incompleta ou distorcida da informação, especialmente aos esforços calculados de enganar, distorcer, disfarçar, ofuscar, ou de outra forma confundir” a contraparte. Daí que não se pode desconsiderar que uma intervenção unilateral do poder público poderá favorecer práticas oportunistas de Concessionários que, por exemplo, sejam acometidos pela maldição do vencedor (Winner´s Curse), ou mesmo pretendam devolver um ativo, que não lhe é mais rentável. Afinal de contas, o exercício do contraditório, sob o aspecto econômico, poderia servir como um móvel para revelação de informações.   

Por fim, mas não menos relevante, é de se destacar que o exercício de prerrogativas publicísticas contratuais, como há muito defendido, incrementa os custos de transação das contratações administrativas, pois que os particulares “precificam” o risco de sua utilização. Para além disso,  o “risco judicial” é um risco sobre o qual o particular, em regra, não tem ingerência. Diante do que, nas modelagens mais recendentes de projetos de infraestrutura, tal risco vem sendo alocado ao poder público

Daí se poder concluir que o posicionamento do STJ no sentido de que a intervenção prescindiria do exercício do contraditório e da ampla defesa, ao fim e ao cabo, sugere que os projetos experimentarão o incremento de seus custos, os quais serão, na ponta, suportados, pelos usuários. Some-se a isso o fato de que, se as modelagens, mais novidadeiras, já consagram um sistema de regulação responsiva, antes da decretação da caducidade, por intermédio dos períodos de cura, estabelecidos em Acordos Tripartites, feriria a proporcionalidade conferir uma potestade dessa ordem, em sede de intervenção. A intervenção é, pois, um ato administrativo acautelatório, o qual pode, a depender da situação concreta, ter o contraditório diferido, mas não extirpado.      

Nesse quadrante, tenho para mim que, ao apreciar tal situação, melhor seria se o STJ tivesse se valido do art. 21 da Lei n°13.665/2018 (LINDB), segundo o qual “A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas”. É dizer, o STJ deveria ter conferido um racional decisório consequencialista em não anular (ou convalidar) uma intervenção levada a efeito, sem que fosse franqueado o exercício do contraditório pelos concessionários, considerando o decurso do tempo e o risco de soluções de continuidade. Tal relativização dos efeitos na declaração da nulidade dos atos administrativos já encontra amparo expresso no direito brasileiro. O que não encontra – sob pena de violação à segurança jurídica – é a intervenção do  Poder Judiciário no regime jurídico de um contrato de longo prazo. 

 

Rafael Véras é consultor Jurídico em Setores de Infraestrutura.
É ainda doutorando e mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.
Notas
[1] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. A superação do ato administrativo autista. In: MEDAUAR, Odete; SCHIRATO, Vitor Rhein. Os Caminhos do Ato administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. pp.  90-113.
[2] WILLIAMSON, Oliver E. The Economic Institutions of Capitalism. New York: The Free Press, 1985, p. 43.
[3] FREITAS, Rafael Véras de. Análise econômica das contratações públicas. Revista de Contratos Públicos. Belo Horizonte, v.7, n.14, set. 2018/fev. 2019.
[4] Cita-se, por exemplo, a Minuta de Contrato de Concessão dos Serviços Públicos de Abastecimento de Água e Esgotamento Sanitário, elaborado pelo Estado do Rio de Janeiro no conhecido leilão da CEDAE: “ ‘34.4.19. atrasos ou suspensões da execução do CONTRATO em razão de decisões judiciais ou administrativas, inclusive dos órgãos de controle, por fatores não imputáveis à CONCESSIONÁRIA’; (…) ‘34.4.20. superveniência de decisão administrativa, judicial ou arbitral que impeça a CONCESSIONÁRIA de cobrar TARIFAS, reajustá-las ou reequilibrá-las nos termos previstos neste CONTRATO, exceto se a CONCESSIONÁRIA concorreu diretamente para a prática dos fatos reputados inválidos pela à decisão’. No mesmo sentido, cite-se a Minuta de Contrato de Concessão da Sexta Rodada de Concessões de Aeroportos, elaborado pela ANAC: “5.2. Constituem riscos suportados pelo Poder Concedente, que poderão ensejar Revisão Extraordinária, desde que impliquem alteração relevante de custos ou receitas da Concessionária, nos termos do item 6.24 deste contrato: (…) ‘5.2.10. custos relacionados aos passivos decorrentes das relações trabalhistas anteriores à data de transferência do contrato de trabalho, tenham sido ou não objeto de reclamação judicial, incluindo os encargos previdenciários, observado o item 2.22.7; 5.2.11. custos relacionados aos passivos fiscais, previdenciários, administrativos e cíveis que decorram de atos ou fatos anteriores ao fim do Estágio 2 da Fase I-A, salvo se decorrentes de atos da Concessionária relacionados à execução da Fase I-B do Contrato; 5.2.12. custos relacionados aos passivos ambientais que tenham origem e não sejam conhecidos até a data de publicação do edital do leilão da concessão’;”.

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