O mérito do riso: limites e possibilidades da liberdade no humor | Coluna Direito Civil

28 de julho de 2021


mérito do riso

“Certos humoristas captaram a envergadura e as nuances dessa fase evolutiva da desorientação com mais acuidade do que os próprios filósofos e sociólogos. Talvez este também seja um sinal dos tempos” – Domenico De Masi.[1]

 

A liberdade de fazer humor usualmente toma como escudo a repulsa à censura de outrora, como se fosse carta branca para parodiar e satirizar qualquer tipo de assunto da ordem do dia, independentemente do destinatário da piada. Mas a questão que se põe à reflexão é: o humor tudo pode?

No mundo contemporâneo e polarizado, qual o lugar do humor? O humor pode ser mensurado, regrado ou regulado? Essas são perguntas que ecoam sem resposta quando a discussão da liberdade de expressão do humor (e da limitação dessa liberdade) ressurge em um país que costuma fazer piada até mesmo de situações catastróficas.

A zona cinzenta entre o humor e a ofensa é complexa, e pode se transformar em sede de conflitos, por trazer à baila questões de índole subjetiva, nem sempre convergentes, de ambas as partes. Afinal, o amplo espectro do humor compreende desde as ironias sutis e refinadas até o chamado “pastelão”, cujo exemplo de destaque são as famosas “videocassetadas”, de um conhecido programa dominical, que encontram até mesmo patrocinadores específicos para arrancar risos das mais variadas formas de se esborrachar no chão.[2]

Na realidade, o limite à prática do humor aproxima-se do sorriso amarelo de quem não recebe a piada com o mesmo espírito gozador de quem a faz. O espaço limítrofe entre o respeito ao sujeito objeto da piada e a boa gargalhada revela-se conflituoso e pode findar na judicialização da piada. Neste ponto pergunta-se: caberá ao judiciário o mérito do riso?

E, na sequência, o que fazer depois do dano causado por uma piada indevida, de mau gosto? A primeira lição ética indica que se deve reconhecer o erro e pedir desculpas. Como o Poder Judiciário vem se posicionando acerca da retratação do humorista causador de dano decorrente de uma piada de mau gosto? Duas posições rigorosamente antagônicas se digladiam no particular: a retratação do autor da piada pode ser utilizada como confissão, imputando-lhe total responsabilidade, ou, por por outra via, como atenuante do dano, reduzindo sua extensão para fins de cálculo do quantum reparatório correspondente aos efeitos patrimoniais e extrapatrimoniais da lesão.[3]

A ausência dessa retratação pública foi tomada, inclusive, como causa para ajuizamento de ações indenizatórias, a exemplo da conhecida demanda judicial travada entre o comediante Rafinha Bastos e a cantora Wanessa Camargo, que buscou a reparação extrapatrimonial do dano sofrido por não ter conseguido obter do comediante a sua retratação[4].

Nesse contexto: a sinceridade de um pedido de desculpas é sindicável? Faz alguma diferença? Ou este pedido não passa de estratégia que visa a obter uma redução do montante de condenação tida por certa?

O exercício da liberdade de humor pode resultar em abuso cujas consequências variam entre dano a um sujeito determinado (normalmente o destinatário da piada) ou mesmo à coletividade, quando a sátira é destinada a um gênero, nacionalidade, religião ou orientação sexual.

Inúmeras situações podem ser relatadas para retratar as hipóteses em que a liberdade de expressão resultou em danos irreparáveis, a exemplo da tragédia que resultou em 12 mortos e 11 feridos, na França, em virtude da publicação de charges do profeta Maomé pelo jornal humorístico Charlie Hebdo[5], ou, ainda, na judicialização da piada – como no especial de Natal do Porta dos Fundos, e no embate entre Rafinha Bastos e Wanessa Camargo – caso emblemático, perpetuado na mídia, cujos contornos se passa a analisar.

Diante da acusação do golpe, por parte da vítima, o ofensor pode retratar-se ou se negar a realizar o pedido de desculpas, por não reconhecer seu erro ou mesmo por enxergar a retratação pública como ofensa à sua própria reputação. Essa foi a base da celeuma em torno da ofensa pública efetivada pelo comediante Rafael Bastos Hocsman, o Rafinha Bastos, contra a cantora Wanessa Camargo. O artista foi condenado a indenizar a cantora Wanessa Camargo, o marido dela e o filho do casal, por ter feito uma piada de mau gosto sobre a gravidez da cantora, no programa CQC, da Rede Bandeirantes, exibido no dia 19 de setembro de 2011.

A cantora emitiu um comunicado à imprensa, publicado no Jornal Estadão[6], esclarecendo ter ajuizado a ação, em razão do seu desejo de obter a retratação do comediante. Confira-se trecho da publicação:

Sinceramente, não estou interessada em dinheiro nenhum, muito menos que ele seja encarcerado em prisão alguma. Apenas desejo que esse processo faça o humorista repensar sua forma ofensiva de falar, disfarçada erroneamente em liberdade de expressão. Desejo a ele o arrependimento e que compreenda o ferimento que causou. (…) Muitas pessoas enviaram mensagens me pedindo para perdoar, mas só se perdoa quem pede desculpas e está arrependido. Eu não tive essa opção.

O comediante, por seu lado, recusou-se reiteradas vezes a pedir desculpas à cantora e à sua família. Em entrevista ao programa Marília Gabriela, exibido após a polêmica, Rafinha Bastos foi perguntado pela apresentadora se era tão difícil pedir desculpas. O comediante respondeu:

Era muito difícil porque eu abriria um precedente terrível contra minha profissão, contra o meu caráter e contra a maneira como eu olho as coisas e olho o mundo. Eu sou um comediante, meu papel, meu objetivo, sempre foi fazer piada inclusive naquele momento. Da maneira que eu poderia agredir alguém com aquela piada eu poderia ter agredido alguém nos últimos 4 anos. (…) Eu preciso me manter autêntico. Pedir desculpas públicas naquele momento eu estaria sendo falso. Eu só estaria fazendo aquilo para agrada quem estava chateado comigo. Isso é não ser autêntico. Eu precisava manter a minha postura.[7]

No processo n. 0201838-05.2011.8.26.0100, Rafinha Bastos foi condenado, no primeiro grau, ao pagamento de 30 salários-mínimos à família ofendida e recorreu da decisão ao mesmo tempo em que postou no seu Twitter um comentário jocoso sobre a condenação (“Status: ocupado. Juntando moedas…”).

Em grau de recurso, o TJSP reformou a decisão para impor uma indenização de R$ 150.000,00 para a família de Wanessa e levou em consideração a piada do humorista realizada no Twitter após a sentença de 1º grau. O STJ confirmou a decisão, em sede de Recurso Especial, porém, o processo ainda não transitou em julgado, ante a apresentação de novos recursos.

Posteriormente, o apresentador foi recontratado pela Rede Bandeirantes para comandar o programa ‘Agora é Tarde’ e, no programa exibido no dia 01/04/2014, fez a seguinte declaração:

“Fui para a minha casa, pensei nessa história toda, olhei para o meu filho, para a minha mulher. Sempre brinquei com isso e acho que finalmente acordei para essa história. Confesso que fiz um pouco essa piada para chamar a atenção. Não cheguei a pensar na menina, no filho dela. Então: Wanessa, a brincadeira acabou. Quero corrigir isso, quero te pedir desculpas, não só pela piada, como também por tudo o que eu fiz depois disso, fui um pouco egoísta. Não precisava ter te exposto, nem me exposto desse jeito. Cheguei à conclusão de que o humor na televisão, sim, precisa ter limites e eu acho que com você eu extrapolei um pouquinho”, comentou[8].

Após os aplausos da plateia, o comediante dançou junto com as bailarinas e, às gargalhadas, registrou ser ‘dia da mentira’. Além de não pedir desculpas, rir da situação danosa por ele retratada, o apresentador reitera o dano à família de Wanessa, ao desdenhar mais uma vez da cantora. A roupagem humorística não pode consistir em salvo-conduto para a ofensa reiterada a direitos da personalidade. O comediante, ao agir desta maneira, eterniza o dano.

Nesta hipótese, a retratação pública espontânea não pôde ser obtida. Porém, a imposição da indenização pelo Tribunal aliada à publicação da decisão em toda a mídia  parecem afigurar-se suficientes para a reparação do dano sofrido pela cantora e sua família.

Como se vê, as hipóteses que ensejam controvérsias jurídicas em torno da temática do humor usualmente retratam circunstâncias nas quais se põem em choque, nos contornos de cada caso concreto, diversos princípios e valores tutelados pelo ordenamento. Assim, por exemplo, se, pelo lado do autor/divulgador, a concepção e a veiculação da piada expressam faceta da liberdade em sentido amplo, por outro, são também merecedores de proteção outros bens jurídicos relevantes das pessoas satirizadas, como honra, privacidade, imagem etc.

As ações que tramitam em todo o país e na corte europeia de direitos humanos espelham, de certa forma, essa tensão. Apesar da existência de resultados variados, ora apontando numa direção, ora noutra, a sobrepujar tal antagonismo tem prevalecido a noção de que o direito ao humor não é absoluto. Na lição de Perlingieri:

“Ao identificar a essência da antijuridicidade em um conflito entre interesses contrapostos, o ordenamento deve ainda, nesta hipótese, adequar-se, na escolha do interesse prevalecente, a critérios personalistas e solidaristas (tutela da pessoa e satisfação de interesses gerais), confirmando uma opção da qual há ampla verificação em matéria privatística: pense-se na disciplina constitucional da iniciativa privada (art. 41 Const.), onde se encontra a contraposição entre o caráter ‘livre’ da mesma e os interesses constituídos pela ‘utilidade social’ e pela ‘segurança, liberdade, dignidade humana’. Iguais considerações valem também para a disciplina da propriedade privada (art. 42 Const.), que determina a harmonização do direito ao interesse geral, e para o direito à saúde que encontra o próprio limite, por força do art. 32, § 2, Const, no ‘respeito da pessoa humana’”. [9]

De outro turno, reputa-se viável a retratação do humorista, em caso de danos a direitos da personalidade, como atenuante da ofensa e não como confissão do ilícito, conforme utilizado equivocadamente por algumas decisões judiciais. Aliás, a sinceridade do pedido de desculpas evidencia a capacidade humana em reconhecer erros e consiste no primeiro passo na tentativa de repará-los da melhor maneira possível.

O limite da liberdade, os confins do riso não repousam sobre o mau gosto da piada ou acidez da crítica, mas sobre o abuso de direito que extrapola as balizas do razoável, ataca direitos da personalidade, deprecia obras e discrimina pessoas: hoje, não se ri mais de piadas racistas, machistas e homofóbicas.

Na construção desse discrímen, o presente estudo, longe de esgotar o tema, procurou fornecer critérios objetivos aptos a distinguir entre liberdade e abuso de humor. Nessa direção, muito embora os tribunais brasileiros, assim como o TEDH, baseiem suas decisões nas circunstâncias particulares de cada caso, alguns parâmetros comuns puderam ser identificados em tentativa de sistematização da matéria, a bem da segurança jurídica que deve pautar sua apreciação, levando-se em conta o choque entre princípios e valores, igualmente relevantes, que permeiam tais controvérsias. São eles, com os respectivos desdobramentos, como visto neste trabalho: (i) propósito perseguido pelo autor da piada; (ii) espectador razoável; (iii) contexto das ações incriminadoras; (iv) conteúdo impugnado; (v) impacto potencial dos meios de veiculação.

O manejo de tais critérios, do ponto de vista prático, não dispensa apreciação prudente dos tribunais, que devem atuar atentos à excepcionalidade das intervenções, sem esquecer da carga axiológica da liberdade, que pesa do outro lado da balança; ao mesmo tempo em que não os libera de empregá-los conjuntamente, na avaliação completa das circunstâncias específicas de cada caso concreto, sempre atentos à historicidade e relatividade do ordenamento jurídico. Propósito, conteúdo e espectador razoável do Brasil de hoje não se confundem com os da Europa de dez anos atrás, por exemplo.

Só assim se viabiliza o exercício pleno da liberdade humorística, em sintonia com o projeto constitucional, sem resultar em abuso, em lesão a direito de terceiro, não cabendo à doutrina ou ao judiciário imiscuir-se no mérito do riso, no bom (ou no mau) gosto da piada.

 


 
Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho
Professor Titular de Direito Civil e ex-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ. Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Advogado e parecerista em temas de direito privado.

 


 
 
Maria Carla Moutinho Nery
Mestre em Direito pela UFPE. Assessora Jurídica do TJPE.
Professora da Escola da Magistratura de Pernambuco – ESMAPE.

 

*Os autores agradecem aos advogados Gustavo Azevedo (mestrando/PPGD-UERJ) e Giovanna Chirico pela valiosa participação na pesquisa que resultou no presente artigo.

 

Notas
[1] MASI, Domenico De. Alfabeto da Sociedade Desorientada: para entender o nosso tempo. São Paulo: Objetiva, 2017, p. 107.
[2] Existem diversas teorias que buscam explicar o fenômeno humorístico, sendo as principais delas: a teoria da superioridade, na qual o humor é um mecanismo de afirmação social de um indivíduo sobre outro, ou de um grupo sobre outro; a teoria do humor por alívio, que explica o humor como uma espécie de válvula de escape para a tensão das relações humanas; a teoria da incongruência, na qual o humor surge de uma dissonância cognitiva, resultado de uma incongruência entre o esperado e o efetivo; e a teoria conceitual, na qual o humor nasce da solução, ou não, de um paradoxo. Para uma análise detalhada sobre cada uma delas, v. FIGUEIREDO, Celso. Por que rimos: um estudo do funcionamento do humor na publicidade. In: Revista Comunicação e Sociedade, a. 33, n. 57, jan.-jun. 2012, pp. 171-198.
[3] “O princípio da reparação integral projeta-se no an debeatur (aferição da reparação) e no quantum debeatur (quantificação da reparação). Em outras palavras, o mandamento exige, de um lado, que todo dano seja reparado (an debeatur) e, de outro, que todo o dano seja reparado (quantum debeatur).”. (MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Limites ao princípio da reparação integral no direito brasileiro. In: civilística.com, a. 7, n. 1, 2018, p. 6).
[4] Processo n. 0201838-05.2011.8.26.0100.
[5] Disponível em: <https://exame.com/mundo/as-capas-de-charlie-hebdo-que-causaram-a-ira-em-extremistas/>. Acesso em: 21 jan 2021
[6] Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,wanessa-camargo-quebra-o-silencio-e-fala-sobre-rafinha-bastos,788719,0.htm>. Acesso em: 26 abr 2014.
[7] Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=Kjc62WM-_sA>. Acesso em: 26 abr 2014.
[8] Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=dsu7YWUwURo>. Acesso em: 26 abr 2014.
[9] PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 164.

 

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