Prescrição intercorrente no Código Civil: a inovação normativa de que ninguém precisava │ Coluna Direito Civil

22 de fevereiro de 2022

Coluna Direito Civil

O que têm em comum a facilitação do comércio exterior, a atividade de tradutor e intérprete público, as cobranças efetuadas por conselhos profissionais, obras de ampliação de redes de energia elétrica e a prescrição intercorrente? Ao que tudo indica, apenas uma patente carência de relevância e urgência hábeis a justificar seu tratamento por meio de medida provisória. Esses e outros temas, porém, foram objeto da Medida Provisória n. 1.040, editada pela Presidência da República em 29.3.2021 e convertida na Lei Federal n. 14.195 (“Lei do Ambiente de Negócios”) em 26.8.2021. A crítica doutrinária quanto ao abuso dessa espécie normativa já é tão longeva que parece ter perdido sua força, diante da praxe consolidada pelo Poder Executivo federal. A conhecida desvirtuação das noções de relevância e urgência atingiu, porém, seu provável paroxismo com a edição da aludida Medida Provisória n. 1.040/2021 justamente no momento em que o país enfrentava o auge de uma crise sanitária sem precedentes, acrescida de graves efeitos econômicos, e era reconhecido mundialmente pelo fracasso na gestão da pandemia da COVID-19.[1]

No cenário caótico enfrentado pela sociedade brasileira em 2021, a inserção de um dispositivo sobre prescrição intercorrente no Código Civil foi, definitivamente, a inovação de que ninguém precisava. Pondo-se de lado a inadequação do momento histórico e da via normativa, porém, causam espanto também o despudor e o pouco-caso com que se reforma, na experiência brasileira atual, uma lei com a extensão e a abrangência do Código Civil. É bem verdade que, em comparação com o histórico recente de reformas do Código Civil,[2] a introdução do art. 206-A no Código Civil, que trata da chamada prescrição intercorrente, poderia parecer inofensiva. Qualquer reforma no Código Civil, no entanto, por menor que aparente ser, dificilmente permanece inócua.

Até relativamente pouco tempo, a discussão em torno da prescrição intercorrente (isto é, aquela operada no curso do processo judicial)[3] era quase desconsiderada pela civilística brasileira, pertencendo ao direito público e, em particular, às pretensões titularizadas por sujeitos públicos. Assim, por exemplo, a pretensão punitiva no campo penal pode ser fulminada pela prescrição operada após a sentença condenatória; da mesma forma, a pretensão executiva da Fazenda Pública em sede tributária pode vir a ser extinta pelo decurso do prazo prescricional intercorrente. A figura parece se coadunar, de fato, com a disparidade entre as partes ínsita a certas relações jurídico-processuais de direito público. Afinal, se o instituto da prescrição sacrifica o interesse do titular inerte do direito em prol da segurança jurídica, como tanto se afirma, uma das hipóteses em que esse sacrifício aparenta ser mais razoável são as relações nas quais esse titular dispunha de maiores recursos para o exercício da pretensão e se omitiu mesmo assim.

O CPC de 2015, em grande parte reproduzindo as disposições do art. 40 da Lei de Execuções Fiscais, inovou ao inaugurar um regime geral de prescrição intercorrente. Seu art. 921, §4o (cuja redação original também foi modificada pela Lei n. 14.195/2021) prevê que, durante o processo de execução, caso não sejam localizados bens penhoráveis ou o próprio devedor, tão logo o exequente tome ciência da primeira tentativa frustrada de localizá-los, começa a correr a pretensão intercorrente. A disposição, em larga medida, parece ter vindo ao encontro do atual perfil do Poder Judiciário brasileiro, francamente obcecado por metas e estatísticas de produtividade e pela exasperação do discurso em torno da celeridade processual. Nesse particular, a introdução da prescrição intercorrente nas execuções civis, por si só, já seria de duvidosa adequação, na medida em que criou para o titular do direito, por mais diligente que seja, o risco de extinção da execução por causa absolutamente alheia à sua vontade. Na valoração legislativa, porém, preponderou o interesse na rápida pacificação das relações diante de execuções fadadas ao insucesso; esse entendimento, de qualquer forma, já estava consagrado na jurisprudência, de modo que a sua positivação parecia ser, realmente, apenas uma questão de tempo.[4]

A disciplina prevista pelo CPC teve o mérito de respeitar as peculiaridades da prescrição no direito civil brasileiro, em particular o entendimento de que seu objeto não são direitos, mas apenas pretensões. Trata-se de diferença significativa em relação a outras áreas: no direito penal, por exemplo, extingue-se a própria punibilidade (art. 107, IV do Código Penal); no direito tributário, extingue-se o próprio crédito fazendário (art. 156, V do CTN). O legislador processual civil, nesse particular, ao restringir a prescrição intercorrente ao processo de execução, automaticamente associou-a ao que se convencionou denominar pretensão executiva, mantendo coerência com o Código Civil, que restringe a incidência da prescrição às pretensões de direito material; também coerentemente, não cogitou o CPC da prescrição intercorrente durante o processo de conhecimento, no qual se apura a existência do próprio direito material.

A ideia de uma prescrição intercorrente operada durante o processo de conhecimento apenas ganhou vulto, provavelmente, na doutrina brasileira com o advento da regra da unicidade da interrupção do prazo prescricional, inovação instituída pelo caput do art. 202 do atual Código Civil.[5][6] Como, nos termos do dispositivo, a interrupção da prescrição somente poderá ser promovida uma única vez, surgiu a dúvida sobre o que ocorreria nos casos em que a ação judicial fosse distribuída após o protesto do título, o reconhecimento da dívida pelo devedor ou qualquer outra causa interruptiva: teria o despacho de citação perdido o efeito interruptivo (retroativo à data do ajuizamento[7])? Caso a resposta fosse afirmativa, correr-se-ia o risco de decurso do prazo prescricional justamente durante o processo cognitivo.[8] Logo se compreendeu, porém, que o despacho de citação do titular do dever, como símbolo máximo da ausência de inércia do titular do direito, não poderia simplesmente perder sua eficácia interruptiva[9] – até porque, sendo vedada, em regra, a autotutela, mesmo o credor mais diligente que não obtivesse sucesso na cobrança extrajudicial não teria alternativa senão prosseguir com ela em juízo.

A regra da unicidade, portanto, deve ser interpretada coerentemente com o sistema, aplicando-se apenas às demais causas do art. 202, para determinar que a interrupção antes de proposta a demanda só pode ocorrer uma vez.[10] E, como a prescrição só recomeça a correr da data do último ato do processo para a interromper (parágrafo único do art. 202 do Código Civil),[11] após a interrupção pelo despacho de citação não há que se cogitar de prescrição enquanto não encerrado o processo de conhecimento.[12] Não se pode discordar, com efeito, da lição de Câmara Leal, que, ainda sob a égide do Código anterior, afirmava que o prazo interrompido apenas pode ser retomado após o final da demanda, como decorrência da própria natureza do instituto da prescrição, de modo que, no seu entender, a regra independeria até mesmo de previsão normativa expressa.[13] Essa interpretação, que era ínsita ao direito brasileiro mais tradicional,[14] parece ser, realmente, a mais razoável, sobretudo quando se constata que até mesmo a demanda que vier a ser extinta sem resolução do mérito (por exemplo, por força do abandono da causa pelo autor) há de obstar a contagem do prazo até o seu término. Ora, uma ação destinada a culminar no julgamento do próprio mérito, por maioria de razão, também deve ser capaz de fazê-lo.[15]

O que o novo art. 206-A do Código Civil modificou nesse cenário? Em primeiro lugar, “esclareceu” um ponto sobre o qual não parecia haver nenhuma controvérsia significativa na práxis brasileira, a saber, o de que o prazo da prescrição intercorrente equivale ao prazo previsto para o exercício da pretensão pelo titular do direito.[16] Considerando que a prescrição intercorrente prevista no CPC vigeu por cerca de cinco anos antes da edição do art. 206-A do Código Civil sem suscitar dúvidas quanto a esse ponto, beneficiando-se, sobretudo, da experiência haurida das execuções fiscais, a regra aparenta ser, no mínimo, desnecessária.[17] Em segundo lugar, a norma inseriu a referência à prescrição intercorrente no próprio diploma de direito material. Para o intérprete excessivamente afeito ao (frágil) argumento da topografia da norma, a previsão do instituto no Código Civil poderia sugerir que a prescrição intercorrente teria sido convertida em uma questão substancial, passível de verificação no próprio processo cognitivo (sede da demonstração da existência do direito material, da prova da sua violação e, não raro, também da liquidação da prestação devida),[18] na contramão do que, como visto, a melhor doutrina vinha sustentando acerca do parágrafo único do art. 202.

Nessa mesma direção, a redação do art. 206-A do Código Civil pode acabar levando o hermeneuta a uma outra confusão, ainda mais preocupante, atinente ao próprio objeto da prescrição intercorrente. Explica-se: a decorrência lógica de a nova disposição prever que o prazo da prescrição intercorrente equivale ao da “prescrição da pretensão” é a de que se trataria de duas espécies diferentes de prescrição, que apenas teriam em comum o lapso temporal. Quanto à prescrição intercorrente, contudo, o novo dispositivo não elucida qual objeto (supostamente distinto da pretensão) estaria sujeito a ela. Como visto, o CPC de 2015 disciplinou a prescrição intercorrente como figura incidente sobre o que se denomina “pretensão executiva” – uma pretensão por assim dizer, ainda que distinta da pretensão material, vez que restrita ao processo executivo. E mesmo a pequena parcela da doutrina que há muito admitia a já criticada possibilidade de prescrição intercorrente no curso do processo cognitivo costumava afirmar que se cuidaria da prescrição da própria pretensão de direito material, simplesmente ocorrida durante o curso do processo judicial.[19] Após o advento do art. 206-A, porém, o intérprete alheio a tais considerações poderia indagar: se a prescrição intercorrente agora está inserida no diploma de direito material (o que poderia sugerir sua incidência durante o processo de conhecimento) e, por outro lado, foi diferenciada da “prescrição da pretensão” (com a qual, nos termos da norma, apenas compartilharia o mesmo prazo), qual seria o seu objeto?[20]

O mais razoável é concluir que a norma do art. 206-A do Código Civil apenas pretendeu referir-se à bastante difundida distinção entre pretensão de direito material e a chamada pretensão executiva,[21] pressupondo que apenas esta última é fulminada pela prescrição intercorrente – a qual, portanto, continua limitada ao processo de execução. Nesse caso, porém, melhor teria sido que a alusão à prescrição intercorrente permanecesse restrita ao diploma processual civil e, em especial, ao processo de execução – sobretudo em um ambiente no qual ressurgem tantas interpretações formalistas e excessivamente apegadas à topografia das normas. Incumbe, nesse cenário, à doutrina esclarecer que o art. 206-A do Código Civil deve ser interpretado no sentido de que a pretensão executória é extinta pela prescrição intercorrente no mesmo prazo previsto para a prescrição da pretensão de direito material.[22] O direito subjetivo respectivo à pretensão, por sua vez, subsiste para todas as consequências jurídicas enquanto não vier a ser satisfeito.

A própria pretensão de direito material, aliás, parece preservar sua relevância jurídica mesmo após o término do processo cognitivo, enquanto não satisfeito plenamente o direito. Chega a causar espécie, nesse sentido, a facilidade com que a doutrina encontra na chamada pretensão executiva uma questão totalmente autônoma, como se a sentença condenatória do titular do dever esgotasse por completo o escopo da pretensão material.[23] Essa parece ser, no entanto, uma tendência também em outros países do nosso sistema, que também tratam a pretensão de execução do julgado como figura nova, sujeita a novo prazo prescricional[24] – embora se considere, idealmente, que esse prazo deveria ser mais longo, em média de dez anos (na contramão do entendimento já antigo e ora positivado no direito brasileiro, que subordina a pretensão executiva ao mesmo prazo da material).[25]

Um importante aceno na direção da interpretação ora sustentada, que restringe a prescrição intercorrente à pretensão executiva, foi o acréscimo feito ao art. 206-A pela Lei n. 14.195/2021 do condicionamento “observado o disposto no art. 921 [do CPC]” – justamente a disposição que trata da suspensão do processo de execução.[26] Em outros termos, nas relações de direito civil, uma vez proferido o despacho de citação do titular da situação jurídica subjetiva passiva (se o interessado a promover na forma da lei processual) e enquanto não finda a fase cognitiva, o titular do direito permanece albergado contra a prescrição da pretensão material, cujo prazo foi interrompido pelo despacho citatório, retroativamente à data do ajuizamento – uma garantia que não é afastada nem mesmo pela regra da unicidade da interrupção. De fato, sendo a cobrança judicial uma via que exige do titular a prova da existência do direito perante o julgador, enquanto essa questão permanece em aberto, não se pode considerar encerrado o ato de cobrança iniciado com a distribuição da ação – e, assim, não se pode tachar de inerte o titular. E, se a prescrição revela, em perspectiva funcional, um juízo amplo de merecimento de tutela dos exercícios dos titulares do direito e do dever,[27] nada parece mudar na valoração destes (ao menos no que diz respeito aos interesses predominantemente da órbita do direito privado), na generalidade dos casos, entre o despacho de citação e o trânsito em julgado.

A reprovação da inércia do autor da ação na movimentação do processo, nesse particular, consiste em valoração de natureza totalmente diversa, voltada a resguardar interesses predominantemente de direito público,[28] muito pouco vinculados à relação material propriamente dita (e tanto assim que a primeira preocupação da doutrina, mesmo entre os autores que sustentam a possibilidade de prescrição intercorrente durante a fase cognitiva,[29] é a de ressaltar que se deve primeiramente perquirir se a morosidade foi devida ao próprio mecanismo judiciário, entendimento já consagrado pelo STJ,[30] eis que a regra, no processo civil, há de ser o impulso oficial). Melhor seria, assim, dispensar à inércia do autor da ação durante a fase cognitiva simplesmente o tratamento conferido pela lei ao abandono processual, com seus requisitos e consequências específicos.[31] Por outro lado, no cumprimento de sentença ou no processo de execução, poderá ocorrer a prescrição intercorrente, por expressa escolha legislativa insculpida no art. 921, §§4º e 7º do CPC, à luz do qual o novo art. 206-A do Código Civil deve ser interpretado.

Um último acréscimo feito pela Lei n. 14.195/2021 ao art. 206-A foi a remissão às causas suspensivas, impeditivas e interruptivas da prescrição, as quais, nos termos atuais do dispositivo, seriam aplicáveis à prescrição intercorrente. O acréscimo preocupa, eis que as mencionadas causas foram concebidas para a prescrição material e, na sua maioria, sequer fazem sentido em sede de execução – o que poderia incentivar uma aplicação equivocada da prescrição intercorrente a objetos outros que não a pretensão executória. Esta não parece ter sido, porém, a intenção do legislador; ao contrário, a emenda que adicionou essa previsão ao texto original foi a mesma que introduziu a remissão ao processo executivo no CPC.[32] Seria preferível, por evidente, a normatização de causas obstativas específicas para a prescrição intercorrente, disciplinadas na própria codificação processual.[33] Surpreendentemente, porém, uma nova medida provisória (MP n. 1.085, de 27.12.2021), também sem qualquer nexo temático com a prescrição, pretendeu alterar outra vez o art. 206-A, mas reproduziu ipsis litteris a redação que já estava vigente.

O papel da norma legislada, não se pode perder de vista, é o de facilitar, tanto quanto possível, sua aplicação de forma lógica e axiologicamente coerente com o restante do ordenamento. Para tanto, é conveniente o uso sistematicamente coerente dos conceitos, o debate legislativo prévio, o estudo minucioso do impacto que uma reforma possa produzir sobre a interpretação de outras normas. É preciso, antes de tudo, que a atividade normativa dedique-se prioritariamente às necessidades efetivas e prementes do país e que reformas potencialmente relevantes não sejam feitas com discrição, como meros apêndices em diplomas normativos ecléticos, mas sim com transparência, seriedade e prudência.


fotode de eduardo nunes de souza

 

Eduardo Nunes de Souza
Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Professor adjunto de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ e professor permanente dos cursos de Mestrado e Doutorado em Direito Civil do Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ.

 

 

Notas

[1] Se alguma evidência for necessária, veja-se, ilustrativamente, a reportagem da época de ROCHA, Camilo. O Brasil visto como ameaça por outros países na pandemia. Nexo. Publicado em 6.3.2021. Disponível em: <www.nexojornal.com.br>.
[2] Ilustrativamente, permita-se a remissão à crítica desenvolvida em SOUZA, Eduardo Nunes de. Lei da Liberdade Econômica e seu desprestígio à autonomia privada no direito contratual brasileiro. Migalhas, 16.4.2020.
[3] Nesse sentido, cf., por todos, RIZZARDO, Arnaldo et al. Prescrição e decadência. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 41.
[4] Como anota Humberto THEODORO JÚNIOR, “o CPC/1973 não regulou a prescrição intercorrente, o que não impediu sua aplicação pela jurisprudência” (Prescrição e decadência. Rio de Janeiro: Forense, 2018, cit., item 79.1).
[5] Nesse sentido, por exemplo, Yussef CAHALI (Prescrição e decadência. São Paulo: RT, 2008, p. 133) destaca a possível correlação entre prescrição intercorrente e a restrição ao número de interrupções do prazo prescricional, registrando que, antes do Código Civil atual, apenas a Fazenda Pública contava com semelhante restrição (art. 8º do Decreto 20.910/1932). O tema da prescrição intercorrente não era, contudo, desconhecido no direito civil anterior. Caio Mário da Silva PEREIRA, por exemplo, lembrava que o STF já havia reconhecido no enunciado n. 264 de sua Súmula (1963) a prescrição intercorrente nas ações rescisórias (Instituições de direito civil, vol. I. Rio de Janeiro: GEN, 2016, p. 574). Não se pode, por outro lado, desconsiderar que a prescrição, nesse caso, diz respeito a questão puramente processual e não material. Alguns autores chegam a afirmar que a prescrição intercorrente estaria fundada no parágrafo único do art. 202 do Código Civil, que corresponde ao art. 173 do Código de 1916 (ALVIM, Arruda. Da prescrição intercorrente. In: CIANCI, Mirna (Coord.). Prescrição no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 120). Isso poderia sugerir que a inovação do caput do art. 202 do Código Civil atual não teria sido a responsável pelo crescimento da discussão. Como se comentará a seguir, porém, o parágrafo único do artigo parece ser justamente o fundamento para que não se reconheça a prescrição intercorrente durante o processo cognitivo.
[6] A reforma do CPC/1973 em 2005, que instituiu a fase de cumprimento de sentença em lugar do processo autônomo de execução, também suscitou essa reflexão, na medida em que, com ela, a execução das sentenças não mais seria principiada por nova citação do devedor, o que dificultava a concepção de uma prescrição autônoma para a fase executiva. A respeito, cf. MARINONI, Luiz Guilherme et al. Novo curso de processo civil, vol. II. São Paulo: RT, 2015, pp. 807-808.
[7] Trata-se da norma prevista pelo §1º do art. 240 do CPC.
[8] Como observam, em perspectiva crítica, GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz; LGOW, Carla. Prescrição extintiva: questões controversas. Revista do Instituto do Direito Brasileiro, ano 3, n. 3, 2014, p. 1844.
[9] Por todos, cf. BARBOZA, Heloisa Helena; BODIN DE MORAES, Maria Celina; TEPEDINO, Gustavo et al. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 384.
[10] Nesse sentido, cf. TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato. Fundamentos do direito civil, vol. I. Rio de Janeiro: GEN, 2020, p. 388; MARTINS-COSTA, Judith. O ‘princípio da unicidade da interrupção’: notas para a interpretação do inciso I do art. 202 do Código Civil. In: BODIN DE MORAES, Maria Celina; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz; SOUZA, Eduardo Nunes de (Coord.). A juízo do tempo: estudos atuais sobre prescrição. Rio de Janeiro: Processo, 2019.
[11] Nesse sentido, entendia CÂMARA LEAL, ainda à luz do Código Civil de 1916: “Essa é a verdadeira interpretação, nem o texto claro [do art. 173 do Código Civil de 1916] pode dar margem a outro modo de compreendê-lo: último ato do processo não pode ser outro senão o último, isto é, aquele pelo qual o processo se finda. […] Uma vez, pois, que a interrupção da prescrição se dá pela citação para a demanda judicial [no sistema do Código Civil atual, pelo despacho citatório], ou pela alegação do direito em juízo, subordinando-o ao pronunciamento da sentença, a prescrição se torna impossível, durante o processo, porque não mais se poderá atribuir ao titular a inércia e a negligência, suas causas eficientes, e, por isso, enquanto dura a demanda, não se inicia um novo prazo prescricional” (Da prescrição e da decadência, cit., pp. 218-219). Parcialmente nesse sentido coloca-se a sempre lembrada lição de CARVALHO SANTOS, segundo o qual “somente com o último termo da demanda ou quando esta tiver fim é que começa a correr o prazo para a prescrição”; o autor, porém, entendia que o “último ato” não seria necessariamente o fim da demanda, mas sim o último termo judicial praticado por efeito da citação – e.g., antes da suspensão do feito (Código Civil brasileiro interpretado, vol. III. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1986, pp. 436-438).
[12] Concorda-se, neste ponto, com a ponderação inicial de Humberto THEODORO JÚNIOR: “Somente após o encerramento do processo é que o prazo prescricional voltará a correr. Na verdade, enquanto marcha o processo, o titular do direito está continuamente exercitando a pretensão manifestada contra o adversário” (Prescrição e decadência, cit., item 79). Parte da doutrina, contudo, inclusive aquele autor, mitigam essa regra, afirmando que ela apenas encontraria aplicação diante de um “processo de andamento regular”, ao passo que o processo paralisado por longo tempo autorizaria a prescrição intercorrente (o.l.u.c.). A tese parece ser capitaneada na doutrina contemporânea por Arruda ALVIM, segundo o qual “o andamento do processo, com a prática de atos processuais, significa, em termos práticos, a manutenção desse estado” de interrupção, de modo que “só a partir da inércia, quando ao autor couber a prática de ato (e nem o réu praticar qualquer ato), e este não vier a ser praticado, durante prazo superior ao da prescrição, é que ocorrerá a prescrição intercorrente” (Da prescrição intercorrente, cit., p. 117). Com a devida vênia à autoridade dos autores que a sustentam, a tese parece contrariar a ratio do parágrafo único do art. 202 do Código Civil, lançando mão de um conceito abstrato de “curso normal” do processo que, a rigor, traduz um imprevisível juízo a posteriori: se houve movimentação dentro do prazo da intercorrente (ainda que promovida pelo réu), afirma-se que o curso do processo é “normal”, que a prescrição intercorrente nunca fluiu e que há um “estado prático” de processo interruptivo; mas, se as mesmas partes deixam o feito paralisado por um dia além do prazo da intercorrente, sustenta-se que o curso do mesmo processo foi “anormal” e que a prescrição já havia começado a contar desde o último ato praticado.
[13] Parte da doutrina que defende a possibilidade de prescrição intercorrente durante o processo de conhecimento afirma que isso se deve ao fato de o sistema brasileiro, diversamente de outros países (como a Itália e Portugal), não ter positivado a regra da “perpetuação da ação”, segundo a qual a propositura da ação não apenas interrompe a prescrição como também impede ou suspende o prazo interrompido (nesse sentido, cf. ALVIM, Arruda. Da prescrição intercorrente, cit., p. 126). A esse argumento já respondia CÂMARA LEAL: “O critério determinante do art. 173 [do Código de 1916, atual parágrafo único do art. 202] é tão rigorosamente científico, está tão de acordo com a teoria da prescrição, que, mesmo que o legislador o tivesse omitido, os princípios gerais dessa teoria forçavam sua aplicação, como norma latente. […] A perpetuação da lide, no sentido de não correr a prescrição da ação enquanto essa se processa, é uma consequência necessária do conceito e fundamento jurídicos da prescrição, e, portanto, independentemente de preceito expresso, ela existe” (Da prescrição e da decadência, cit., p. 219).
[14] Segundo Caio Mário da Silva PEREIRA, uma “[c]onsulta à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, anterior ao Código Civil brasileiro de 1916, revela diversos julgados, no sentido de que era um dos efeitos da contestação da lide a perpetuação da ação (Pedro Lessa, Clóvis Beviláqua)” (Instituições de direito civil, vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 685).
[15] Em estudo de direito comparado, Reinhard ZIMMERMANN analisa que a maior parte dos países europeus de base romano-germânica preveem que o ajuizamento da ação interrompe o prazo prescricional; via de regra, esses sistemas, ou bem preveem o tempo específico durante o qual perdura a interrupção, ou bem estipulam que cada ato praticado no processo por qualquer das partes ou pelo órgão julgador consiste em uma nova interrupção (Comparative Foundations of a European Law of Set-off and Prescription. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, pp. 117-119). Segundo o autor, ambas as opções são “insatisfatórias”, pois criam “complexidades desnecessárias” e “consequências práticas indesejáveis” (Ibid., p. 120). Conclui, assim, que o melhor sistema seria uma via media: a suspensão (e não a interrupção) do prazo prescricional desde o ajuizamento até o trânsito em julgado. Após, sendo o autor vencedor, começaria a correr novo prazo para a execução; caso contrário, com ou sem resolução do mérito, desde que ainda subsista a pretensão autoral, o prazo original voltaria a contar do ponto em que se encontrava no ajuizamento, aplicando-se, se o tempo restante fosse muito exíguo, um prazo legal mínimo (Ibid., p. 121).
[16] Com efeito, desde 1963, o STF assim já decidira no enunciado n. 150 de sua Súmula.
[17] A conclusão é expressamente manifestada por Pablo Stolze GAGLIANO e Salomão VIANA, que afirmam que o art. 206-A nada muda em relação ao que já se compreendia na matéria (A Prescrição Intercorrente e a nova MP nº 1.040/21 (Medida Provisória de “Ambiente de Negócios”). Disponível em: <https://direitocivilbrasileiro.jusbrasil.com.br>, publicado em 30.3.2021). Ironicamente, o estudo foi citado pelo próprio relatório produzido pelo Senado Federal na tramitação da medida provisória que criou o art. 206-A do Código Civil (Parecer n. 160/2021-PLEN/SF, de 4.8.2021).
[18] Como lecionam Cândido Rangel DINAMARCO e Bruno Vasconcelos Carrilho LOPES, o procedimento-padrão previsto pelo CPC em vigor é apto a proporcionar o reconhecimento, o dimensionamento e a preservação de uma pretensão, além de sua satisfação propriamente dita (Teoria geral do novo processo civil. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 130).
[19] Neste particular, interessante construção era proposta, antes do atual art. 206-A, por Arruda ALVIM, segundo o qual “a chamada prescrição intercorrente é aquela relacionada com o desaparecimento da proteção ativa, no curso do processo, ao possível direito material postulado, expressado na pretensão deduzida” (Da prescrição intercorrente, cit., p. 120. Grifos do original). Embora a noção de “proteção ativa” pareça diferir, para o autor, da “pretensão deduzida”, explica ele mais adiante que “faz-se alusão a proteção ativa, porquanto, ainda que prescrita a pretensão, se ocorrer o pagamento da dívida prescrita, esta será insuscetível de repetição” (o.l.u.c.). Como se percebe, portanto, o autor pretende aludir à noção de acionabilidade da pretensão, muitas vezes entendida como o objeto mais tecnicamente adequado para a prescrição na ordem civil (conforme analisado em SOUZA, Eduardo Nunes de; SILVA, Rodrigo da Guia. Influências da incapacidade civil e do discernimento reduzido em matéria de prescrição e decadência. Pensar, vol. 22. Fortaleza: UNIFOR, 2017).
[20] O direito brasileiro rejeitou a categoria, algo intermediária, da ação de direito material, trabalhando apenas com as noções de pretensão e ação. No ponto, com ampla bibliografia: SOUZA, Eduardo Nunes de. Problemas atuais de prescrição extintiva no direito civil: das vicissitudes do prazo ao merecimento de tutela. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 10, n. 3, 2021, item 2.
[21] Na lição de DINAMARCO, a fase de execução é aquela “em que se veicula a pretensão à tutela executiva” (Instituições de direito processual civil, vol. I. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 172), por oposição ao processo de conhecimento, que se volta ao julgamento da pretensão material (Anspruch) (Capítulos de sentença. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 51). Explicita THEODORO JÚNIOR: “Com a formação do título executivo nasceu uma nova situação jurídica para o titular: o direito à execução forçada, e a consequente pretensão de sujeitar o obrigado à realização da responsabilidade contratual” (A prescrição intercorrente e a paralisação da execução forçada. In: CIANCI, Mirna (Coord.). Prescrição no Código Civil, cit., p. 166).
[22] Nesse sentido coloca-se o estudo de Pablo Stolze GAGLIANO e Salomão VIANA (A Prescrição Intercorrente e a nova MP nº 1.040/21, cit.), textualmente citado pelo relatório do Senado Federal no Parecer n. 160/2021-PLEN/SF, de 4.8.2021.
[23] Existem, evidentemente, honrosas exceções. Parte da doutrina, ao tratar da prescrição intercorrente, chega a reconhecer que, “a rigor, não se trata de prescrição, já que a sua incidência no curso do processo impede a sua caracterização como extinção de uma nova pretensão. Trata-se de figura anômala – muito mais parecida com a perempção ou com a preclusão do que com a prescrição” (MARINONI, Luiz Guilherme et al. Novo curso de processo civil, vol. II, cit., p. 809). Os autores ainda reconhecem que, mesmo após o trânsito em julgado, ainda está em jogo a satisfação da pretensão material (Ibid., p. 810).
[24] Conforme registra Reinhard ZIMMERMANN (Comparative Foundations of a European Law of Set-Off and Prescription, cit., p. 113), um dos objetivos centrais de diversos sistemas europeus ao preverem regras específicas sobre a prescrição de pretensões estabelecidas por procedimentos judiciais é justamente o de evitar qualquer questionamento acerca dos efeitos do julgamento sobre a pretensão original (nomeadamente, se ela continua existindo ou é substituída por uma nova pretensão).
[25] Segundo ZIMMERMANN, a pretensão oriunda de um julgamento judicial goza de muito maior segurança e previsibilidade, não permitindo ao devedor alegar qualquer crença na possibilidade de não cumprir seu dever. Assim, explica o autor, um prazo curto de prescrição apenas levaria o credor a realizar tentativas de cobrança que ele já supõe, à luz do patrimônio do devedor, serem inúteis, fazendo ressurgir a insegurança que o provimento jurisdicional já lograra debelar (Ibid., pp. 113-114).
[26] Curiosamente, porém, o acréscimo da remissão ao CPC foi criticado pelo Senado Federal (Parecer n. 160/2021-PLEN/SF, de 4.8.2021) na tramitação da MP que se converteu na lei em comento, afirmando-se que a referência ao CPC seria atécnica, pois “contraria a pretensão de generalidade” do Código Civil e não haveria “justa causa para a remissão” (p. 45 do parecer).
[27] Assim se sustentou em SOUZA, Eduardo Nunes de. Problemas atuais de prescrição extintiva no direito civil, cit., item 1.
[28] Cogita-se, por exemplo, da necessidade de “limitação temporal da sujeição dos bens do devedor ao credor, sob pena de se conceber limitação indeterminada da liberdade individual” (MARINONI, Luiz Guilherme et al., cit., p. 809).
[29] Por todos, cf. RIZZARDO, Arnaldo et al. Prescrição e decadência, cit., p. 42.
[30] Como se sabe, o STJ consagrou, no enunciado n. 106 de sua Súmula, desde 1994, que: “Proposta a ação no prazo fixado para o seu exercício, a demora na citação, por motivos inerentes ao mecanismo da Justiça, não justifica o acolhimento da arguição de prescrição ou decadência”. O atual CPC caminhou no mesmo sentido, inovando em relação à lei anterior ao dispor, no §3º do art. 240, que: “A parte não será prejudicada pela demora imputável exclusivamente ao serviço judiciário”.
[31] Como se sabe, o abandono da causa pelo autor por mais de 30 dias é hipótese de extinção do feito sem resolução do mérito, nos termos do art. 485, III do CPC. Considerando o prazo exíguo previsto pela lei processual para a configuração do abandono, muito inferior ao menor prazo prescricional previsto pelo Código Civil, não resulta legítimo que o julgador – ou, após a contestação, o próprio réu –, diante da inércia do autor, aguarde prazo muito superior apenas com o fito de que a ação seja extinta com resolução do mérito (pelo reconhecimento de suposta prescrição intercorrente na fase cognitiva).
[32] Trata-se da emenda n. 77 à MP. 1.040/2021, de 5.4.2021, que, com justificativa lacônica, de apenas um parágrafo, afirma que a alteração “traz segurança jurídica para o instituto da prescrição, reconhecendo a atual jurisprudência”.
[33] Nesse particular, aliás, a Lei n. 14.195/2021 alterou também o CPC, para prever, nos atuais §§4º e 4º-A do art. 921, regras específicas sobre termo inicial e interrupção da prescrição no processo de execução – cuja adequação ainda merecerá, naturalmente, avaliação crítica por parte da doutrina processual civil, mas que ostentam ao menos o mérito de serem pensadas diretamente para a fase de execução. Assim, embora criticável a inserção impensada da referência às causas obstativas no art. 206-A, tudo leva a crer que a disposição, nessa parte, não surtirá grande repercussão prática.

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