Quem Cancela a Cultura do Cancelamento?

1 de março de 2021

 
Gabriela Buarque
Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Alagoas.
Assessora judiciária no Tribunal de Justiça de Alagoas.

 

 

Breves reflexões sobre o direito de imagem e privacidade em face de cancelamentos e exposições na internet

O desejo de linchamento perpassa a história da humanidade. Desde as cenas de tortura em praça pública nas civilizações mais antigas até a Lei de Talião na Mesopotâmia, sempre se observou um fervor social por uma retribuição que traga a sensação de justiça. No contexto contemporâneo de simbiose entre realidades presenciais e virtuais, não poderia ser diferente. Em que pese as mudanças no trato social desencadeadas pelo advento da internet, observa-se que o desejo pelo julgamento não cessou. Não à toa, a palavra “cancelamento” foi o termo de 2019 eleito pelo Dicionário Macquarie,[i] que elege expressões atinentes ao comportamento humano.

O cancelamento é compreendido como uma represália dos internautas contra determinada pessoa ou grupos, após fala ou prática de ato tido como contrário a determinadas pautas sociais, sejam posturas compreendidas como machistas, homofóbicas, racistas, misóginas ou insensíveis a minorias e outros grupos. Em síntese, um boicote virtual.

Observa-se, assim, a criação de uma espécie de tribunal virtual, em que determinadas posturas ou pessoas são rechaçadas a partir de um boicote em massa, sem que muitas vezes haja direito de resposta efetivo, sendo tal prática mais comum com celebridades e influencers que diuturnamente se expõem nas mídias sociais.

A influenciadora digital Gabriela Pugliesi,  por exemplo, perdeu diversos seguidores e contratos de publicidade após ser criticada quando aglomerou com amigos durante a pandemia e postou em seus stories, estimando-se o prejuízo em três milhões de reais.[ii] O cancelamento também atingiu Mc Gui em 2019 quando o cantor postou um vídeo zombando de uma criança na Disney[iii] e o médico Drauzio Varella por ter abraçado uma trans condenada por estupro e homicídio.[iv] Mas não somente famosos são atingidos pelo cancelamento: o americano Emanuel Cafferty fazia o símbolo de “ok” no trânsito quando foi fotografado e denunciado por racismo no Twitter. O ato foi interpretado como um símbolo de supremacia racial. 

O impacto patrimonial é evidente quando se constata que os influencers são pessoas que geram renda diretamente a partir de sua reputação e visibilidade.[v] O cancelamento, então, passa a se impor como um fator de resolução contratual nos pactos entre fornecedores e influencers contratados para divulgar determinado produto ou serviço em um nicho de mercado, considerando que, muitas vezes, a razão que motiva tais contratações é precisamente a reputação positiva do usuário dentro do meio virtual. Tais contratos, desse modo, impõem uma ressignificação na compreensão de institutos clássicos de resolução contratual, de modo que a base objetiva do negócio passa a se conectar diretamente com a imagem do internauta perante seu nicho de mercado.

Para além dos impactos financeiros, o cancelamento também pode refletir no estado emocional e psicológico daquele que praticou determinado ato julgado como incorreto. Tal constatação é previsível quando se verifica a pressão que muitos usuários sentem na necessidade de se encaixar em padrões de determinados núcleos midiáticos, levando-o a uma frequente busca por aceitação e autoafirmação em um olimpo de virtudes. 

O grande dilema do cancelamento é a tenuidade de situá-lo como um ato político estratégico que denuncia práticas antissociais sem que recaia na fatídica destruição exacerbada de reputações e disseminação de discursos de ódio na internet, além dos riscos de enviesamento e ausência de contexto que a divulgação de versões unilaterais de uma das partes envolvidas pode acarretar. 

Ademais, a superexposição fomentada pelas plataformas e a deliberação de cessão de dados pessoais facilita um contexto de vigilância e julgamento. Nesse diapasão, é cada vez mais comum que pessoas adotem comportamentos de fachada, institucionalmente tidos como correspondentes às expectativas dos estereótipos criados para parametrizar condutas.

O cancelamento também põe luz sobre o fenômeno do exposed, compreendido como a denúncia de postagens privadas entre os agentes que revelam determinados casos ou diálogos para julgamento social. Argumenta-se que “o movimento exposed constitui um novo canal para o exercício da liberdade de expressão de mulheres e jovens que se sentiram vítimas de tratamento abusivo ou violento, encontrando no Twitter um canal privilegiado de manifestação”.[vi]

A prática do exposed pode acarretar, ainda, o redirecionamento da posição da vítima, que pode transitar entre a figura de ofendida e de ofensora, a depender da forma como a denúncia é transmitida e do contexto que é repassado ao público internauta. Esses movimentos ressaltam os choques entre direitos de liberdade de expressão, privacidade, imagem, esquecimento e ampla defesa, tornando desafiadora a aplicação de institutos jurídicos clássicos dentro do ambiente virtual. 

Com efeito, o direito de privacidade, no contexto contemporâneo, abandona a clássica concepção americana de ser o mero “direito de estar só” de Samuel Warren e Louis Brandeis (1890),[vii] numa concepção individual negativa, para abranger outras facetas de controle sobre as informações pessoais, especialmente na sociedade digital. Stefano Rodotá desenvolve a concepção de autodeterminação informativa como direito fundamental e argumenta que o exercício do direito de privacidade, hoje, se manifesta, sobretudo, pelo controle do fluxo das nossas informações pessoais. 

A internet põe ainda mais em xeque essa concepção de privacidade, principalmente quando se considera a exposição voluntária de detalhes da vida privada, que, não raro, são alvos de apedrejamentos virtuais. Para além disso, lança luz sobre o direito ao esquecimento, uma vez que os efeitos na internet são cada vez mais difíceis de serem apagados, persistindo memórias digitais acerca de determinado acontecimento. 

No mesmo contexto, o exposed suscita questionamentos acerca do direito de imagem e honra daquele que tem determinado diálogo ou situação divulgado. Nesse trilhar, não raro, diálogos gravados sem o consentimento de um dos interlocutores são utilizados como elemento de prova em processos judiciais e acordos de colaboração premiada. Então, existem limites na divulgação de situações que se iniciam no âmbito privado, mesmo quando o divulgador é um dos participantes do diálogo?

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 583.937, em 2009, assentou o entendimento de que não há ilicitude no uso de gravação de conversa telefônica feita por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, com a intenção de produzir provas, sobretudo para defesa em ações penais, enquanto consectários do exercício do contraditório e ampla defesa. Isso porque tal situação é essencialmente diferente da interceptação, uma vez que nesta há um terceiro captando o conteúdo. Na hipótese do exposed, usualmente a divulgação dos escritos ou áudios parte das próprias pessoas envolvidas no caso. 

Não se ignora que existem situações que demandam a mitigação do paradigma de privacidade e imagem dos interlocutores. Não à toa as gravações clandestinas são aceitas como provas lícitas no processo judicial em busca de uma perspectiva de verdade material. 

A problemática surge quando o exposed é norteado por um mero sentimento de vingança, curiosidade ou julgamento da imagem e honra alheia, de modo que diversos relatos privados podem ser divulgados sem que haja causa específica ou relevante interesse público para tanto. O jogador de futebol Neymar, por exemplo, já teve conversas particulares no Whatsapp com a ex-BBB Flayslane divulgadas por uma amiga da participante do reality show, no intuito de comprovar que os dois teriam tido um envolvimento amoroso, uma vez que o jogador havia negado e debochado da situação.[viii]

Haveria, então, nuances no dever de sigilo de um dos interlocutores para divulgação de escritos, imagens ou diálogos sem o assentimento do outro?

Nesse sentido, o art. 20 do Código Civil dispõe que, salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se destinarem a fins comerciais.

Sendo assim, não parece razoável a proliferação gratuita do exposed, demandando a verificação concreta de interesses jurídicos que, ponderados com o direito de privacidade e imagem do interlocutor, justifiquem a divulgação de determinado conteúdo, sob pena de compensação por danos extrapatrimoniais à honra, imagem, vida privada e qualquer outro direito da personalidade, além de tipos penais como calúnia, difamação e injúria.

Por óbvio, não se trata de tornar ilícita qualquer prática de fofoca ou conversas informais. Trata-se de compreender o impacto de uma exposição que, a depender do caso concreto, pode ser indevida e tornar o divulgador um efetivo violador da privacidade, quando não há, sobre a divulgação, qualquer elemento de defesa, justa causa ou interesse público que justifique a exposição, especialmente no contexto virtual, onde os efeitos usualmente são duradouros, irascíveis e de difícil controle. Nesse ponto,

(…) nota-se que a lesão praticada virtualmente possui a capacidade de produzir efeitos – danos, portanto – durante longo período em razão do mencionado desprendimento espaço-temporal proporcionado pela rede. Assim, a mesma lesão à honra praticada virtualmente por meio da publicação de texto difamatório na internet pode gerar diversos danos, tanto patrimoniais como extrapatrimoniais, ao longo de todo período que o conteúdo lesivo estiver disponível para acesso aos internautas, a se constatar o afastamento temporal do dano em relação à lesão inicial ao bem jurídico honra.[ix]

Ressalte-se que tampouco se pretende inutilizar o cancelamento como instrumento de denúncia de comportamentos antissociais que podem assumir relevância pública, ao passo em que também se compreende que nem toda exposição acarreta necessariamente abuso de direito por parte daquele que a propõe, compreendendo-se que a problemática em questão possui diversas camadas. Comportamentos nocivos e discriminatórios sempre serão práticas a serem combatidas.

Trata-se, tão somente, de ponderar o equilíbrio nas relações virtuais, para que efetivamente denúncias sociais não se transformem em um indevido instrumento de vingança privada. Não obstante a internet funcione como um elo que conecta diversas pessoas ao redor do mundo, também pode servir como instrumento de segregação ao afastar pensamentos diferentes e fomentar a intolerância, especialmente considerando a existência de bolhas informacionais no ambiente virtual.

 

[i] DEMARTINI, Felipe. A cultura do cancelamento foi eleita como termo do ano em 2019. Canal Tech. Disponível em: https://canaltech.com.br/redes-sociais/a-cultura-de-cancelamento-foi-eleita-como-termo-do-ano-em-2019-156809/. Acesso em: 16 jan. 2021.
[ii] FOLHA DE SÃO PAULO. Gabriela Pugliesi pode ter tido prejuízo de R$ 3 milhões ao dar festa em quarentena. Disponível em: https://f5.folha.uol.com.br/celebridades/2020/05/gabriela-pugliesi-pode-ter-tido-prejuizo-de-r-3-milhoes-ao-dar-festa-em-quarentena.shtml. Acesso em: 19 jan. 2021.
[iii] BERNARDO, Kaluan. De Nego do Borel a Silvio Santos, veja quem foi ‘cancelado’ em 2019. TAB Uol. Disponível em: https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2019/12/26/de-drake-a-silvio-santos-veja-quem-foi-cancelado-em-2019.htm. Acesso em: 19 jan. 2021.
[iv] A Gazeta. Drauzio rebate críticas de polêmica com trans: “sou médico, não juiz”. Disponível em: https://www.agazeta.com.br/entretenimento/famosos/drauzio-rebate-criticas-de-polemica-com-trans-sou-medico-nao-juiz-0320. Acesso em: 27 jan. 2021.
[v] BRANDÃO, Everilda. Contratos com influenciadores digitais: quando a reputação é o motivo de contratação e de resolução contratual. Migalhas Contratuais. Disponível em: https://migalhas.uol.com.br/coluna/migalhas-contratuais/337414/contratos-com-influenciadores-digitais–quando-a-reputacao–e-o-motivo-de-contratacao-e-de-resolucao-contratual. Acesso em: 20 jan. 2021.
[vi] SILVA, Rosane Leal; VIEIRA, Ingra Etchepare. O movimento “exposed” no contexto da sociedade em rede: tensões entre as narrativas de abusos sofridos por internautas e o direito ao esquecimento dos supostos ofensores. In: Direitos humanos e vulnerabilidades. Org. VERONESE, Josiane Rose Petry; SOUZA, Cláudio Macedo de. Florianopólis: Habitus Editora, 2020, p. 125.
[vii] WARREN, Samuel D. BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Disponível em: https://www.cs.cornell.edu/~shmat/courses/cs5436/warren-brandeis.pdf. Acesso em: 20 out. 2020.
[viii] QUEM. Amiga divulga prints que seriam de conversas de Flayslane com Neymar. Disponível em: https://revistaquem.globo.com/QUEM-News/noticia/2020/05/amiga-divulga-prints-que-seriam-de-conversas-de-flayslane-com-neymar.html. Acesso em: 29 jan. 2021.
[ix] MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. AZEVEDO, Gustavo Souza de. A lesão continuada decorrente de publicação em mídia digital. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos. CATALAN, Marcos. MALHEIROS, Pablo (coord.). Direito Civil e Tecnologia. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 400.

 

Quer receber os textos da Coluna Direito Civil? 


Deixar uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *