Todas as concessões têm bens reversíveis? | Coluna Direito da Infraestrutura

18 de agosto de 2021

imagem ilustrativa relacionada a concessões

A influência do direito Continental Europeu nas modelagens concessórias ainda causa certas perplexidades jurídicas. Ao se modelar um contrato de concessão, o operador do direito não se desvincula do entendimento de que o trespasse de um serviço público congregaria um regime jurídico único, mesmo que tal regime esteja dissociado da produção de eficiências produtivas e, principalmente, alocativas. O princípio da continuidade dos serviços públicos é um exemplo saliente disso. Dotado de alto grau de abstração e de indeterminabilidade, ele pode servir, seja para lastrear a operação graciosa de um ativo (por intermédio de vedações genéricas de interrupção e pela profusão de isenções tarifárias), seja para impor a reversão do patrimônio utilizado na exploração do ativo para o Poder Público, quando do decurso da vigência do contrato de concessão. Assim interpretado, a partir de um viés populista, e não econômico, tal princípio desconsidera que a concessão é uma forma de financiamento da exploração de utilidades públicas, veiculada, por intermédio de desenhos de mecanismos, que visam a fomentar a produção de adequados incentivos para realização de jogos cooperativos de soma zero entre o poder concedente e os concessionários.

Razão pela qual o princípio da continuidade dos serviços públicos ainda causa confusões interpretativas a propósito do regime dos bens reversíveis. De fato, a interpretação conjugada dos arts. 18, incisos X, XI e 31, II, 23, X, e 35, §1º, da Lei nº 8.987/1995 vem lastreando o entendimento segundo o qual todas as concessões deveriam ser modeladas, com a previsão do trespasse de bens reversíveis. Tal entendimento, contudo, não se coaduna com o racional econômico-financeiro dos contratos de longo prazo. É que, em termos econômicos, os investimentos realizados, pelo concessionário, em bens reversíveis podem ser equiparados a um financiamento que o Poder Concedente contrata com um particular. Nesse quadrante, o particular aporta os recursos para a aquisição, construção ou reforma dos bens, com investimentos próprios ou de terceiros (financiadores), sendo, posteriormente, remunerado, pelas receitas da concessão (que equivalem ao “pagamento” do Poder Concedente). Assim é que, caso o valor que foi investido pelo particular não possa ser integralmente ressarcido (amortizado) pelas receitas recebidas durante a vigência contratual, o Poder Público terá o dever de “quitar” o saldo ainda não foi pago (ou seja, as parcelas não amortizadas), nos termos do que dispõe o art. 36 da Lei n°8.987/1995. Cuida-se de uma indenização, que terá de ser composta pelo valor de depreciação do bem, assim considerado como o valor atrelado ao desgaste natural do patrimônio e pelo valor de amortização dos investimentos, que será calculado com lastro no fluxo de receitas do projeto diferido no tempo.

Não é por outra razão que, em razão das projeções econômicas da exploração de determinado ativo (consubstanciado no EVTEA), algumas concessões não serão modeladas com a presença de bens reversíveis. No âmbito da concessão de transporte aéreo de passageiros, por exemplo, de que trata as Lei nº 11.182/2005 (Lei de criação da ANAC) e a Lei nº 7.656/1986 (Código Brasileiro de Aeronáutica – CBA), malgrado a importância das aeronaves, elas não integram o acervo de bens reversíveis. Do mesmo modo, no âmbito de uma concessão de transporte urbano de passageiros ou de uma concessão de ferrovias, os ônibus e o material rodante, respectivamente, poderão não integrar, necessariamente, o acervo de bens reversíveis, seja porque tais bens, ao final dos contratos, terão uma depreciação tão elevada que a sua inclusão na estrutura econômica contratual não se justificaria, seja por que tal patrimônio poderá se tornar obsoleto, em razão do advento de novas tecnologias. No setor de telecomunicações, que é severamente impactado pelo advento de novas tecnologias, o tema restou bem endereçado, pelo art. 93, XI, da Lei n°9.472/1997 (Lei Geral de Telecomunicações), consoante o qual o contrato de Contrato de Concessão para o Serviço Telefônico Fixo Comutado – STFC indicará “os bens reversíveis, se houver” (Grifos postos).

Todo esse racional restou bem endereçado, pelo Acordão n°2711/2020 – TCU, da Relatoria do Ministro Bruno Dantas, que teve por objeto a realização de auditoria operacional a propósito da assimetria regulatória entre os arrendamentos portuários e os Terminais Privados (TUPs), de acordo com os modelos aplicados a portos internacionais de referência (benchmarking). Nos termos do voto condutor, restou assentado que “a reversão de bens presente nos contratos de arrendamento mostra-se especialmente danosa ao erário. Primeiro, porque obriga a autoridade portuária, ao final do contrato, a incorporar bens obsoletos ou sem nenhuma utilidade. Segundo, porque mesmo que seja atribuído ao futuro arrendatário o ônus de desmobilizar e dar a correta destinação a tais equipamentos, o custo disso será repassado ao poder público, pois será incorporado no fluxo de caixa que embasará a licitação”. Diante do que a Lei n°14.047/2020 incluiu o art. 5° C à Lei n°12.815/2013 (Marco Regulatório do Setor Portuário), justamente com o desiderato de excluir a obrigatoriedade da cláusula de bens reversíveis nos arrendamentos portuários.

Diante do exposto, é de se concluir esse breve ensaio no sentido que os bens reversíveis não são inerentes a todo e qualquer projeto de infraestrutura. De fato, para efeito de sua inclusão no modelo econômico-financeiro da exploração de um ativo, deve-se identificar se: (i) o bem, ao final de um contrato de longo prazo (que pode ter vigência de 20, 30, 40 anos), ainda terá alguma utilidade para preservar a continuidade dos serviços públicos; (ii) de acordo com a projeção de desenvolvimento tecnológico do setor regulado, a reversão militaria na apropriação de um bem obsoleto para o patrimônio público, quando da extinção da concessão; (iii)  o custo de desmobilização do ativo não iria de encontro ao dever de modicidade tarifária, inviabilizando, inclusive, que seja instaurada uma nova concorrência por determinado mercado; e (iv) a previsão de uma cláusula de reversibilidade desequilibra, concretamente, a assimetria regulatória engendrada pela lei-quadro setorial, importando em vicissitudes concorrenciais.

 

Rafael Véras
é doutorando e mestre
em Direito da Regulação
pela FGV Direito Rio.

 

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