A Nova Reforma Regulatória no Setor Portuário | Coluna Direito da Infraestrutura

17 de setembro de 2020

A Lei n°14.047/2020, ao trazer medidas de enfretamento às contingências provocadas pela Covid-19, acabou, ao fim e ao cabo, importando em uma minirreforma do Setor Portuário, como bem diagnosticado, por Rafael Wallbach Schind[1]. O art. 5°A, introduzido à Lei n°12.815/2013 (Marco Regulatório do Setor Portuário), prescreve que os “contratos celebrados entre a concessionária e terceiros, inclusive os que tenham por objeto a exploração das instalações portuárias, serão regidos pelas normas de direito privado, não se estabelecendo qualquer relação jurídica entre os terceiros e o poder concedente, sem prejuízo das atividades regulatória e fiscalizatória da Antaq”. Cuida-se de prescrição similar à do art. 25, §1°, da Lei n°8.987/1995, que disciplina os contratos privados celebrados por concessionários de serviços públicos.

Bem vistas as coisas, é possível se afirmar que os referidos contratos não se submeterão ao regime jurídico-administrativo (usualmente atribuído aos contratos administrativos), na medida em que têm por objeto a faculdade que foi atribuída ao concessionário para explorar atividades economicamente adjetas ao pacto concessório. De outro lado, por se tratar de um contrato de direito privado celebrado no âmbito de uma relação que veicula a prestação de um serviço público (a exploração da infraestrutura portuária em todo o Porto Organizado –art. 21, XII, f, da CRFB), tal contrato privado sofrerá a incidência de influxos regulatórios. Cuidar-se-á, pois, de um contrato privado regulado, que se encontrará coligado ao título habilitante da Concessão do Porto Organizado, a ser regulado pela ANTAQ. São exemplos de contratos privados regulados os disciplinados, pela Resolução Conjunta nº 1, de 24 de novembro de 1999 (ANEEL, ANATEL e ANP), que aprova o Regulamento para o Compartilhamento de Infraestrutura entre os Setores de Energia Elétrica, Telecomunicações e Petróleo, bem como os disciplinados, pela Resolução n° 2.552, de 14 de fevereiro de 2008 (com as alterações trazidas pela Resolução n° 3.346/2009), que disciplina o contrato celebrado por concessionárias de rodovia para a exploração de receitas extraordinárias.

Nesse quadrante, o artigo em análise tem por desiderato disciplinar uma relação jurídica de concessionários privados, que serão escolhidos, por intermédio de procedimento licitatório, para explorar toda a infraestrutura do Porto Organizado (em substituição às Companhias Docas, a exemplo do que vem se passando no processo de desestatização no Porto de Santos, que vem sendo capitaneado pelo BNDES) e um terceiro, que explorará parcela da infraestrutura portuária. Assim é que se tratará  de uma modalidade de regulação menos intrusiva para a exploração de parcela da infraestrutura portuária do que a que rege os contratos de arrendamentos portuários. Tenho que a liberdade contratual, nesses ajustes, se materializará, dentre outros aspectos, pela escolha do contratado privado; pelo estabelecimento de condições comerciais; dentre em outros aspectos negocias. Os aspectos regulatórios, a serem estabelecidos pela ANTAQ, por sua vez, terão lugar, por intermédio: (i) da fixação de diretrizes de preservação qualitativas dos serviços prestados aos usuários por esse “subconcessionário”; (ii) da aferição dos impactos externos que serão provocados pela instituição de um regime concorrencial assimétrico, intra e extra porto; (iv) da solução de eventuais divergências entre as partes (no exercício da função administrativa de arbitramento regulatório); (iv) da aferição de qual percentual deste contrato privado será revertido à modicidade tarifária da Concessão de todo o Porto Organizado. 

Também, pela nova Lei, foi incluído uma espécie de “dispensa de licitação” para novos arrendamentos portuários, a qual poderá ser utilizada, quando for comprovada a existência de um único interessado em sua exploração e estiverem presentes os seguintes requisitos: (i) a realização de chamamento público, pela autoridade portuária, com vistas a identificar interessados na exploração econômica da área; e (ii) se a futura exploração está em conformidade com o plano de desenvolvimento e zoneamento do porto – PDZ. Embora o novel diploma a denomine de “dispensa” (modalidade discricionária de contratação direta), cuida-se, na verdade, de uma hipótese de inexigibilidade de licitação, na qual é reconhecida a inviabilidade concreta da competição pelo mercado (Competition for the Market)[2] da exploração de determinada infraestrutura portuária. O dispositivo consagrada a lógica segundo a qual a licitação não é um fim em si, mas um meio para que o poder público escolha o “melhor padrão de serviço, a lhe ser prestado”; daí que, se ela for desnecessária ou antieconômica, impõe a sua não realização. Considerar a realidade e os efeitos das decisões administrativas é medida salutar, e que se impõe, sobretudo a partir das vigências dos art.s 20 e 21 da LINDB. Mas não só, para além da constatação da inviabilidade fática de competição, a contratação direta terá de ser compatível o com o planejamento, de curto, de médio e de longo prazo do setor portuário (nos termos do que dispõe o art. 174, caput, da CRFB e da Portaria n°61/2020 do MINFRA).      

É de se destacar, ainda, a inclusão do art.5°-C à Lei n°12.815/2013, o qual estabelece um rol de cláusulas obrigatórias ao contrato de arrendamento portuário. Mais do que reproduzir o art. 23 da Lei n°8.987/1995, tenho que o artigo em comento consagra um sistema de regulação contratual aos contratos de arrendamento portuário (Regulation by Contract). Reforça-se, pois, a necessidade da elaboração de matrizes de riscos contratuais (mais realistas), que orientarão a formação do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de arrendamento portuário (aferido com base no estabelecimento de um Fluxo de Caixa Marginal – FCM, nos termos da Resolução ANTAQ n°3220/2014 e da Portaria n°530/2019 do MINFRA); a necessidade de se estabelecer um sistema de remuneração do arrendatário; as obrigações de desempenho e as obrigações de investimentos do arrendatário.

Cuida-se de uma grande oportunidade para que as novas modelagens dos contratos de arrendamento portuário tragam novos institutos que já vem sendo experimentados, com certo sucesso, em outros módulos concessórios. Assim, por exemplo, é possível cogitar-se da inclusão de uma Cláusula de Reserva de Outorga, com o objetivo de dar conta de desequilíbrios contratuais, de forma imediata (e sem dispêndios de recursos públicos), a ser formada por um percentual de outorgas variáveis e de deflatores tarifários (a exemplo do que se passa nos contratos de concessão de rodovias e de saneamento mais recentes). Na linha de inovações, poder-se-ia cogitar da inclusão de uma Cláusula de Proposta Apoiada de Revisão das Tarifas Portuárias, a ser apresentada, em conjunto, pelos Operadores Portuários (a qual tem lugar, nas concessões de aeroportos, modeladas pela ANAC). Mais ainda: essa reforma traz uma excelente oportunidade também para a extinção ou reformulação da Cláusula de Movimentação Mínima Contratual – MMC, seja por que, com a abertura do mercado para os Terminais Privados – TUPs, ela já se tornou desproporcional, seja por que, com a crise provocada pela Covid-19, ela pode inviabilizar, economicamente, diversos contratos de arrendamentos portuários.   

É de se destacar, ainda, o 5°D, incluído à Lei n°12.815/2013, que veio a disciplinar a conhecido título habilitante do “Uso Temporário das Instalações Portuárias” (o qual teve a sua validade diversas vezes questionada). Cuida-se de um título habilitante, que veicula um modelo de regulação experimental. De acordo com David Trubek[3], o experimentalismo institucional demanda a adoção de arranjos jurídicos experimentais em um setor específico da economia que possuam ao mesmo tempo estabilidade e flexibilidade. A estabilidade significa que, se o modelo estiver produzindo resultados positivos, ele irá se manter. Por outro lado, a flexibilidade assegura que, à medida que a execução da política forneça o feedback necessário, seja possível a fácil revisão dos arranjos estabelecidos. De acordo com Leonardo Coelho[4], “o processo de experimentalismo institucional envolve, dessa forma, uma redefinição dos arranjos jurídicos e uma reorganização das ferramentas jurídicas para favorecer a experimentação de ações, no sentido de que elas sejam constantemente analisadas, de modo a se sujeitar a uma imediata e flexível revisão à luz das consequências observadas”. É que tal título habilitante visa a experimentar e testar a viabilidade de determinado mercado de exploração de infraestrutura portuária.

De minha parte, não vislumbro como tal modelo poderá atrair interessados, seja porque seus investimentos não serão amortizados nem indenizados, seja porque ele não terá qualquer vantagem competitiva em eventual certame. Nesse quadrante, tenho que melhor seria, pelo menos, criar um sistema de incentivos, por intermédio do qual, caso o utilizador temporário não se sagre vencedor do futuro certame do arrendamento, ele seja indenizado, pelo seu vencedor (na forma do que se passa nos Procedimentos de Manifestação de Interesse PMI).

Por fim, destaco a relevante inclusão do inciso VI, ao art. 3°, da Lei n°12.815/2013, o qual impõe que os arrendamentos portuários observem a “ liberdade de preços nas operações portuárias, reprimidos qualquer prática prejudicial à competição e o abuso do poder econômico”.  O novel diploma teve por desiderato pôr fim à controvérsia a propósito da obrigatoriedade da inclusão de um  price cap aos valores cobrados pelos arrendatários[5]. Cuida-se de entendimento que restou consagrado, no Acórdão n°1077/2015, do Tribunal de Contas da União – TCU, em sede de pedido de apreciação formulado pela extinta SEP, no sentido de que se “retirar a exigência de utilização da regulação por tarifa-teto, porquanto esta se mostra como uma dentre as opções de metodologias de regulação tarifária aplicáveis à modelagem dos arrendamentos a serem leiloados, sendo da competência do poder concedente a escolha da metodologia a ser utilizada”.

Nesse sentido, andou bem o novel diploma, pois que a obrigatoriedade da fixação de tarifa-teto em todos os arrendamentos portuários, desconsidera: (i) a assimetria de informações entre o regulador e o regulado, o que pode importar na fixação de tetos elevados; (ii) a discricionariedade do poder concedente em se valer do critério de julgamento de “maior valor de outorga”, no âmbito do qual tal metodologia seria inaplicável ou de qualquer modelagem econômico financeira; (iii) a possibilidade de se cogitar da delegação de arrendamentos brownfield, sem investimentos, ativo sobre o qual esta metodologia se mostraria inaplicável. Daí por que tenho comigo que os arrendamentos portuários devem se submeter ao regime de liberdade tarifária, por intermédio do qual, como ensina Jachintho Arruda Câmara[6],  “o poder concedente admite que o próprio concessionário estabeleça o valor da remuneração que vai ser cobrada do usuário passando a exerce, em relação à matéria, basicamente uma função fiscalizadora”. Cuida-se de regime previsto no art. 104 da Lei n°9472/1997 (Lei Geral de Telecomunicações) segundo o qual “ Transcorridos ao menos três anos da celebração do contrato, a Agência poderá, se existir ampla e efetiva competição entre as prestadoras do serviço, submeter a concessionária ao regime de liberdade tarifária”; na concessão de transporte aéreo de passageiros, na forma do art. 48, §1°, da Lei n°11.182/2005, segundo o qual  “No regime de liberdade tarifária, as concessionárias ou permissionárias poderão determinar suas próprias tarifas, devendo comunicá-las à ANAC, em prazo por esta definido”. E que, em boa hora, chega ao setor portuário.

Em resumo, é possível denominar a Lei n°14.047/2020 de “Reforma da Reforma”, para me valer de uma expressão do setor elétrico. Por meio dela, foram endereçados importantes gargalos do setor portuário, especialmente no âmbito da Concessão do Porto Organizado e do Arrendamento Portuário. Que venham os novos investimentos.      

[1] https://www.conjur.com.br/2020-ago-29/rafael-wallbach-schwind-minirreforma-setor-portuario
[2] CAMACHO, Fernando Tavares; RODRIGUES, Bruno da Costa Lucas. Regulação econômica de infraestrutura: como escolher o modelo mais adequado? Revista do BNDES, n. 41, junho de 2014
[3] TRUBEK, David M. Developmental states and the legal order: towards a new political economy of development and law. University of Wisconsin Law School, Paper n. 1075, Feb. 2009. p. 20.
[4] COELHO, Leonardo. O direito administrativo como caixa de ferramentas e suas estratégias In RDA – Revista de Direito Administrativo Belo Horizonte, ano 2016, n. 272, maio/ago. 2016
[5] No âmbito da regulação dos contratos de concessão, é recorrente a adoção da metodologia de price cap, por intermédio da qual à remuneração do concessionário incidem deflatores tarifários, que visam a repassar eficiências operacionais dos concessionários para os usuários. JAMISON, M. A. Regulation: price cap and revenue cap. In: CAPEHART, B. L. (Ed.). Encyclopedia of energy engineering and technology. 2007. p. 1.245-1.251. JOSKOW, P. L. Incentive regulation in theory and practice: electricity distribution and transmission networks. In: Economic regulation and its reform: what have we learned? NBER, 2011. cap. 2. LAFFONT, J.-J.; TIROLE, J. A theory of incentives in procurement and regulation. Cambridge: MIT Press, 1993. LITTLECHILD, S. C. Regulation of British telecommunications’ profitability: report to the secretary of State. Department of Industry, 1983
[6] O Regime Tarifário como Instrumento de Políticas Públicas, in Revista de Direito Público da Economia – RDPE Belo Horizonte, ano 3, n. 12, out./dez. 2005

 

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