Dispensa de autorização conjugal e a inobservância do regime de bens no Programa Casa Verde e Amarela: o alto preço da tentativa de efetivação do direito à moradia | Coluna Direito Civil

9 de março de 2021

 
Débora Brandão
é pós-doutora em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca.
Doutora e Mestre em Direito Civil pela PUC/SP.
Professora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo.
Professora de cursos de pós-graduação.

 

 

A Lei n. 14.118, de 12 de janeiro de 2021, que instituiu o Programa Casa Verde e Amarela (PCVA), tem como objetivo a promoção do direito à moradia para famílias que atendam a determinados requisitos, em nítida implementação de mais uma política pública de efetivação do Direito Humano de moradia digna.

O PCVA foi estabelecido com diretrizes expressas no art. 2º da Lei para fomentar o atendimento habitacional compatível com a realidade local, com o reconhecimento da diversidade regional, urbana e rural, ambiental, social, cultural e econômica do País, observando a função social da propriedade, sem se esquecer do necessário desenvolvimento econômico e social, a fim de efetivar o desenvolvimento urbano sustentável, reduzindo as desigualdades sociais e regionais.

Este Programa tem como objetivo direto, para as pessoas naturais, aumentar a quantidade de residências, sobretudo para a população de baixa renda.

Trata-se de lei com algumas impropriedades técnicas, mas o que chama a atenção é o fato de ser possível entender o que, de fato, o governo federal planeja apenas no art. 8º, § 6º, ao dispor que as unidades habitacionais produzidas pelo Programa poderão ser disponibilizadas aos beneficiários sob a forma de cessão, doação, locação, comodato, arrendamento ou venda, mediante financiamento ou não, em contrato subsidiado ou não, total ou parcialmente, conforme previsto em regulamento.

São inúmeras categorias jurídicas à disposição da população, que até então, tinha acesso aos programas habitacionais, notadamente, por meio de venda ou cessão. As possibilidades são importantes a fim de fomentar o direito à moradia digna e deverão ser regulamentadas para que se clareie o modo como esse direito se efetivará.

Nota-se que há alguma atenção por parte do governo federal a respeito deste tema, que integra o rol dos Direitos Humanos. No entanto, é preciso salientar algumas questões que surgem e merecem a atenção da comunidade jurídica.

Em primeiro lugar, não se trata de norma autoaplicável porque ela mesma condiciona a sua efetividade à existência de regulamento, que deverá ser redigido sem prazo definido.

Mas superada a falta do regulamento, os artigos 13, 14 e 15 dessa lei causam certo espanto.

O art. 13 estabelece que os contratos e os registros efetivados no âmbito do Programa serão formalizados, preferencialmente, em nome da mulher e, na hipótese de esta ser chefe de família, poderão ser firmados independentemente da outorga do cônjuge, afastada a aplicação do disposto nos arts. 1.647, 1.648 e 1.649 do Código Civil.

Resgata-se a mulher “chefe de família”, num conceito de família hierarquizada, o que não condiz mais com a realidade jurídica vigente no Brasil, desde a promulgação da Constituição Federal, em 1988. A designação escolhida pelo legislador deveria ser outra, afinada com a ordem constitucional.

Em relação à regra legal, doações, vendas, cessões serão formalizadas, preferencialmente, em nome da mulher. O advérbio preferencialmente não afasta a possibilidade de os contratos serem formalizados em nome do marido ou de ambos.

Porém, a Lei estabelece outra possibilidade e, esta, mais grave: a dispensa da autorização conjugal disposta no art. 1.647 do Código Civil, nos casos de alienação ou gravação de ônus real sobre bens imóveis, para os casados em qualquer regime que não seja a separação convencional. As pessoas casadas sob o regime de comunhão parcial, comunhão universal, participação final nos aquestos ou regimes personalizados não precisam se submeter ao comando do Código Civil brasileiro[1].

A razão de estabelecer a preferência para que o imóvel fique em nome da mulher tem bases que remontam à segunda metade do século passado, quando políticas públicas de fixação das pessoas na terra adotaram o mesmo critério sob a alegação de que a mulher precisava ter segurança eis que, com o fim do relacionamento conjugal, precisavam ter segurança porque historicamente permaneciam com a guarda dos filhos do casal.

O legislador se esqueceu de que o critério que deve nortear políticas públicas como a presente é vulnerabilidade, que independe de gênero ou existência de prole.

A Constituição Federal estabelece a igualdade entre homens e mulheres no exercício dos direitos e deveres inerentes à sociedade conjugal (art. 226, § 5º) e o texto da lei desiguala expressamente.

É sabido que se há elemento de discrímen, para realizar a diferenciação no tratamento, há suporte jurídico e inexiste inconstitucionalidade. Mas, concretamente, a lei não foi nesta direção.

Também ignorou o fato de que a composição familiar não é exclusivamente heterossexual e, havendo duas mulheres ou dois homens vivendo maritalmente é preciso estabelecer um critério, que deveria, mais uma vez, ser o de vulnerabilidade e não o gênero.

A Lei também ignora que os casamentos são estabelecidos sob dimensões patrimoniais, normalmente, fruto do exercício da autonomia privada dos nubentes que escolhem o regime de bens mais apropriado para reger suas relações, ao dispensar os dados relativos ao cônjuge ou companheiro do titular do bem e a indicação do regime de bens no momento do registro do bem no Cartório de Registro de Imóveis (§ 1º do art. 13).

O art. 14 da Lei que institui o PCVA estabelece que em caso “de dissolução de união estável, separação ou divórcio, o título de propriedade adquirido, construído ou regularizado pelo Programa Casa Verde e Amarela na constância do casamento ou da união estável será registrado em nome da mulher ou a ela transferido, independentemente do regime de bens aplicável, excetuadas as operações de financiamento habitacional firmadas com recursos do FGTS”.

Mais uma vez a inconstitucionalidade salta aos olhos porque desconsidera, além do regime de bens, o fato de que pode ter havido, e é provável que assim tenha ocorrido, pagamento com a colaboração de ambos, direta ou indireta.

O eventual enriquecimento sem causa que a mulher terá em quaisquer das duas hipóteses (celebração do contrato/registro ou por ocasião da partilha pelo fim do relacionamento), de acordo com o art.15 da Lei, será resolvido em perdas e danos.

Porém, é de se questionar se é a melhor solução porque o objetivo da lei é a efetivação da política pública habitacional, especialmente para a população de baixa renda e o pagamento de indenização deve ficar inviabilizado na maioria dos casos, justamente por impossibilidade econômica da mulher proprietária.

O Programa tem o mérito de fomentar o acesso ao direito à moradia à população de baixa renda por diversas formas, inclusive por meio da venda da propriedade, mas não apenas ela, que é passo largo na efetivação dos Direitos Humanos.

Porém, em tempos de crescimento de feminicídio, a lei, ao estabelecer a propriedade ou a titularidade do direito relativo à moradia em favor da mulher, sem justificativa razoável, pode ser mais uma hipótese de agravamento de crise conjugal, com o desfecho na insensatez da “feitura da justiça pelas próprias mãos”, por parte do marido que se vê sem qualquer direito sobre o bem pelo qual pagou durante anos de sua vida.

Apartar-se da regra do Código Civil, que é boa e importante para a segurança patrimonial do casal, parece ser equívoco que deve ser corrigido pelo legislador porque não é preciso ser vidente para antever mulheres sendo mortas por maridos inconformados pela injustiça fundada na lei. O sonho da casa própria nasce no coração dos casais e sob o solo sagrado do lar é possível que se ceife a vida de mulheres que sonharam com suas famílias, debaixo de um teto para estabelecerem seus lares.

[1] Pode ter sido pensado para evitar a fraude de o casal vir a se divorciar, apenas juridicamente, sem nunca ter deixado de conviver maritalmente, para que não venham a solicitar o benefício mais de uma vez.

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