Famílias Ectogenéticas e a Amplitude/Restrição do Acesso às Técnicas de Reprodução Humana Assistida: uma análise das alterações propostas pela Resolução nº 2.283/20 do CFM à luz do Biodireito | Coluna Direito Civil

23 de março de 2021

Manuel Camelo Ferreira da Silva Netto
Advogado. Mediador Extrajudicial. Doutorando em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Direito Privado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Pesquisador do Grupo de Pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas (CONREP/UFPE/CNPq) e do Núcleo de Estudos em Direito Civil Constitucional – Grupo Virada de Copérnico (UFPR/CNPq). Vice-Presidente da Comissão de Direito Homoafetivo e Gênero do Instituto Brasileiro de Direito de Família – Diretoria de Pernambuco (IBDFAM-PE). Membro da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Pernambuco (CDSG/OAB-PE).

 

Falar em reprodução humana assistida (RHA), diante do contexto jurídico brasileiro atual, sem dúvidas, é uma tarefa que demanda um árduo esforço da doutrina jurídica. Afinal, a escassez normativa na matéria é latente, havendo, na seara jusprivatista, um único artigo, o 1.597 do Código Civil de 2002 (CC/02)[1], que se proponha a alguma forma de regulação – voltada apenas à atribuição de presunções de filiação – e, mesmo assim, de abordagem bastante incipiente quando comparada a real complexidade da matéria. Diante desse cenário, o que acaba servindo de parâmetro para a aplicação da RHA são as resoluções editadas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM)[2], as quais, cabe aqui frisar, têm um condão meramente deontológico, ou seja, de orientação ética para os profissionais da medicina que aplicam os citados procedimentos, acarretando-lhes sanções administrativas perante seu órgão de classe,  caso venham a desobedecer as previsões ali estipuladas.

Note-se que, se por um lado, esses preceitos, de cunho bioético[3], são cruciais para a apreensão de uma tutela jurídica adequada e que respeite integralmente a pessoa humana submetida a essas relações médico-paciente, de outra sorte, eles não são suficientes para atender aos fins coercitivos pretendidos pelo norma jurídica. Por essa razão, no dizer de Heloisa Helena Barboza (2000, p. 212-213), o desenvolvimento de um ramo próprio, o do Biodireito, deve considerar não apenas tais preceitos éticos, mas também a observância aos Direitos e Garantias Fundamentais postulados na Constituição Federal, tais quais a Dignidade da Pessoa Humana, a Liberdade, a Igualdade, a Solidariedade etc.

Nesse sentido, quando se fala em projetos parentais ectogenéticos, ou seja, aqueles que são concretizados com o auxílio da RHA (PEREIRA, 2015, p. 289), a jurisprudência tem se valido tanto das diretrizes deontológicas estabelecidas pelo CFM, quanto do recurso a principiologia constitucional para fazer valer o estabelecimento de vínculos materno-paterno-filiais entre os beneficiários e as crianças geradas pelo uso dessas técnicas. Inclusive, os esforços do Judiciário, na tentativa de facilitar a viabilização dos registros civis dessas pessoas, levaram à edição, em âmbito nacional, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do provimento nº 52/2016, o qual fora posteriormente substitutído pelo de nº 63/2017, ambos destinados a promover a extrajudicialização desses registros e a consequente proteção dessas entidades familiares, fossem elas heteroafetivas ou homoafetivas.

Corroborando com tais perspectivas, o CFM, atento aos debates nos campos médico, social e jurídico, está constantemente revisitando e revendo suas normativas, a fim de atualizá-las perante as demandas da sociedade. Foi por essa razão, por exemplo, que, a partir de 2013, após o STF ter reconhecido a natureza familiar de uniões entre pessoas de mesmo gênero (ADI nº 4.277/DF e ADPF nº 132/RJ), passou-se a prever expressamente enquanto beneficiários os pares homoafetivos e com eles, também, as pessoas solteiras que desejassem realizar seus projetos individuais de parentalidade. Não obstante, fez-se ressalva expressa ao direito de objeção de consciência dos médicos, o que demanda certos temperamentos do ponto de vista jurídico, pois deverá ser verificada à luz do caso concreto, não podendo ser oposta em casos que violem diretamente à Igualdade e à Liberdade Familiares na proibição a toda e qualquer forma de discriminação que obste o exercício do Livre Planejamento Familiar por tais pessoas.

Ademais, em 2017, inovação trazida pela resolução 2.168/17 foi a possibilidade de realização da preservação social e/ou oncológica de gametas sexuais, embriões ou tecidos germinativos (Item I-2)[4]. Tal disposição foi de extrema importância, sobretudo para os pacientes submetidos a tratamento oncológico, que podem ter como efeito colateral a infertilidade; sendo importante, portanto, o oferecimento dessa alternativa. Além disso, deu a outros pacientes – os quais não tenham a infertilidade diagnosticada ou aqueles submetidos a outros tipos de tratamentos ou que forem acometidos por doenças os quais gerem um quadro de infertilidade – a opção de preservarem seus gametas sexuais, no intuito de desempenharem um projeto parental futuro. Essa mudança foi, inclusive, igualmente benéfica para as pessoas trans que, apesar de não terem constado expressamente da normativa, também estariam autorizadas a valer-se dela, tendo em vista que, quando submetidas a procedimentos de hormonioterapia ou de intervenções cirúrgicas, podem vir a tornarem-se inférteis.

Recentemente, no entanto, foi realizada uma alteração na resolução 2.168/17, através da resolução 2.283/20, que deu nova redação ao Item II-2 daquela, passando a constar da seguinte forma: “2. É permitido o uso das técnicas de RA para heterossexuais, homoafetivos e transgêneros”, em substituição ao texto anterior, que dizia: “2. É permitido o uso das técnicas de RA para relacionamentos homoafetivos e pessoas solteiras, respeitado o direito a objeção de consciência por parte do médico”. Sobre essa mudança, entretanto, em que pese a sua nítida intenção de ratificar a amplitude de acesso às mais diversas configurações familiares, duas pontuações precisam ser aqui levantadas e problematizadas:

  1. Quando o CFM busca trazer, no bojo da resolução, uma redação aparentemente mais arrojada e inclusiva, fazendo menção expressa a “heterossexuais, homoafetivos e transgêneros”, peca, em certa medida, na escolha terminológica. Primeiramente, pois, quando se fala em expressão de sexualidade enquanto uma identidade própria de cada indivíduo, tem-se a figura dos “heterossexuais” e dos “homossexuais”, ao passo que a terminologia “homoafetivo” não serviria para designar a pessoa, mas sim a relação familiar na qual está inserida, destacando a Afetividade e o cuidado nela presentes[5]. Além disso, é importante frisar que a diversidade sexual e de gênero não se restringe a um binarismo hetero/homo, cis/trans, abarcando, da mesma forma, as figuras da bissexualidade, da pansexualidade, da assexualidade, da não-binariedade, da intersexualidade etc. Por esse motivo, a título de sugestão, mais adequado seria se a normativa indicasse que: “O uso das técnicas de RA é permitido independentemente da orientação sexual/expressão de sexualidade ou da identidade de gênero das pessoas beneficiárias, não importando, igualmente, para fins de sua aplicação, a formatação da entidade familiar nas quais se encontram inseridas”;
  2. Outrossim, ainda que o novo texto da resolução tenha removido a menção expressa à objeção de consciência, em sua exposição de motivos fez-se constar que tal trecho seria prescindível, pois a atuação do profissional da medicina já está amparada pelos “Princípios Gerais” do Código de Ética Médica ( CEM – Resolução CFM nº 2.217/2018), o qual já prevê essa escusa no seu Capítulo I, item VII[6]. A esse respeito, é preciso destacar, contudo, que esse direito não é absoluto, comportando restrições e não podendo o profissional da medicina recursar-se em casos: a) de ausência de outro médico; b) de urgência ou emergência; e, c) quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente. Além do mais, consoante sustentam Igor de Lucena Mascarenhas e Ana Carla Harmatiuk Matos (2020), o próprio CEM, em seu Capítulo I, item I[7], não autoriza que a atividade desses profissionais seja exercida mediante qualquer forma de discriminação, razão pela qual, para os autores, a escusa de consciência em razão da orientação sexual ou da identidade de gênero do(a) benenficiário(a) representaria uma dupla violação, tanto aos direitos da personalidade, quanto à possibilidade de concretização de projetos parentais de pessoas integrantes da diversidade sexual e de gênero, que, por sua vez, faria surgir o direito a reparação por danos morais e também existenciais.

Por último, para enfatizar, embora as resolução elaboras pelo CFM sejam importantes, a fim de criar padrões éticos de conduta na aplicação das técnicas de RHA, a sua interpretação não pode afastar-se dos princípios fundamentais que regem o ordenamento como um todo e, em especial, aqueles que norteiam o Direito das Famílias, garantindo a concretização da Liberdade de Planejamento Familiar para os mais diversos tipos de entidades familiares, sejam elas biparentais, monoparentais, multiparentais ou coparentais, heteroafetivas, homoafertivas ou transafetivas.

 

Referências:
BARBOZA, Heloisa Helena. Princípios da bioética e do biodireito. Revista de Bioética. Brasília, vol. 8, n. 2, p. 209-216, 2000, p. 212-213. Disponível em: http://www.revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/276/275. Acesso em 22 set. 2020.
BRAUNER, Maria Claudia Crespo. Direito, sexualidade e reprodução humana: conquistas médicas e o debate bioético. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
DINIZ, Débora; GUILHEM, Dirce. O que é bioética. São Paulo: Brasiliense, 2012.
MASCARENHAS, Igor de Lucena; MATOS, Ana Carla Harmatiuk. Objeção de consciência médica em reprodução humana assistida: entre o direito e a discriminação. Migalhas, 17 de dezembro de 2020. Disponível em: https://migalhas.uol.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/337964/objecao-de-consciencia-medica-em-reproducao-humana-assistida–entre-o-direito-e-a-discriminacao. Acesso em 10 jan. 2020.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Dicionário de direito de família e sucessões: ilustrado. São Paulo: Saraiva, 2015.
SILVA NETTO, Manuel Camelo Ferreira da. Projetos parentais ectogenéticos LGBT: o desafio da construção das famílias homoparentais e transparentais perante o ordenamento jurídico brasileiro. 2020. 424 f. Dissertação (Mestrado em Direito) Programa de Pós Graduação em Direito, Centro de Ciências Jurídicas/ Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco, 2020.
SOARES, SOARES, André Marcelo M.; PIÑEIRO, Walter Esteves. Bioética e Biodireito: uma introdução. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006.
Notas:
[1] Código Civil de 2002: “Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: […]I – nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; […] II – nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; […] III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; […] IV – havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; […] V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido”.
[2] Até, então, o CFM editou 7 normativas relativas ao uso da RHA, quais sejam: a 1.358/1992, a 1.957/2010, a 2.013/2013, a 2.121/2015, a 2.168/2017 e, recentemente, a 2.283/2020.
[3] A bioética é um ramo da ética aplicada que propõe a preservação e o respeito à condição humana frente aos avanços tecnológicos promovidos pela meio científico. Nesse sentido, um dos marcos teóricos mais relevantes é o da Teoria Principialista, aperfeiçoada por James Childress e Tom Beauchamp em seu livro “Princípios da Ética Biomética” (1979), na qual elencam quatro princípios basilares: a) da Autonomia – determinada pelo respeito à autodeterminação do paciente com relação aos tratamentos nele implementados, devendo sempre estar precedida do consentimento livre e esclarecido; b) da Beneficência – primando que o profissional da saúde sempre promova benefícios aos seus pacientes; c) da Não-Maleficência – assentado na máxima “primum non nocere”, que impõe a esses mesmos profissionais o dever de não causar prejuízos aos pacientes; e, d) da Justiça – que pressupõe uma distribuição equitativa dos recursos biotecnológicos (No mesmo sentido, ver DINIZ; GUILHEM, 2012; BRAUNER, 2003; SOARES; PIÑEIRO, 2006).
[4] Resolução nº 2.168/2017 do CFM: “2. As técnicas de RA podem ser utilizadas na preservação social e/ou oncológica de gametas, embriões e tecidos germinativos”.
[5] No mesmo sentido, ver SILVA NETTO, Manuel Camelo Ferreira da, 2020, p. 82.
[6] Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 2.217/2018): “VII – O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente”.
[7] Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 2.217/2018): “I – A medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza”.

 

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