A responsabilidade civil dos robôs inteligentes e de seus fabricantes | Coluna Direito Civil

1 de junho de 2021

 

Vivemos um tempo de profundos avanços tecnológicos, que afetam a vida relacional dos indivíduos. De todo o extenso conjunto de avanços tecnológicos que provocam severos impactos sociais e jurídicos, um problema, em especial, salta aos olhos: a potencial concessão de personalidade jurídica a máquinas dotadas de inteligência artificial.

O precedente neste sentido foi inaugurado: em 2017, concedeu-se a cidadania árabe a um robô com inteligência artificial, de nome Sophia. Naturalmente, o reconhecimento do status de cidadã árabe não apenas parte da premissa de que Sophia seja uma entidade personificada – ao menos de acordo com o Direito daquele país –, mas também reclama urgente intervenção legislativa, com o propósito de estabelecer os efeitos jurídicos daí decorrentes, sobretudo no tocante aos possíveis direitos e deveres civis assumidos pela nova pessoa eletrônica. Com efeito, cumpre constatar que, em havendo a atribuição da cidadania saudita ao robô, é forçoso reconhecer-lhe, ainda que por via oblíqua, a concessão de personalidade jurídica, pois seria inconcebível reconhecer cidadania a um objeto, sendo tal atributo próprio das pessoas.

A desenvoltura de Sophia para interagir com os humanos impressiona, e o fato de uma nação soberana dotá-la do status de cidadã coloca em xeque um sem número de categorias jurídicas, particularmente nos domínios do Direito Civil. Pensar as formas por meio das quais os institutos que compõem este ramo jurídico devem ser pensados (e repensados) é tarefa que se impõe, e com urgência. Para fins deste estudo, colocam-se em pauta duas clássicas instituições juscivilísticas: a personalidade jurídica e a responsabilidade civil.

Em uma primeira e breve visão de personalidade jurídica, parte-se do conceito clássico conceito do instituto, enquanto “a aptidão genérica para titularizar direitos e contrair obrigações, ou, em outras palavras, (…) o atributo necessário para ser sujeito de direito”.[1]

Com o aperfeiçoamento da inteligência artificial e diante da perspectiva de a humanidade passar a conviver constantemente com máquinas dotadas deste artifício, impõe-se o questionamento: afinal, qual seria sua natureza jurídica de seres robóticos, dotados de inteligência artificial? Seriam considerados meras coisas, simples objetos de direitos postos à disposição das pessoas? Ou seria possível considerá-los, enquanto seres inteligentes e autônomos, novos sujeitos de direitos próprios, ao lado das pessoas naturais e jurídicas?  Ademais, seriam tais seres capazes de assumir deveres e obrigações em nome próprio, tornando-se assim responsáveis civilmente pelos atos que praticarem, sobretudo quando se revelem lesivos aos interesses alheios?

Quanto à possível personificação de uma máquina inteligente, cabe impor uma premissa: o conceito de personalidade é de cunho jurídico. Assim, nada impede que a lei – tal como se deu na experiência árabe – atribua personalidade a entes que, até então, não gozavam deste atributo. Afinal, se entidades não humanas, tais como as corporações, podem assumir direitos e responsabilidades sociais, não há razão para recusar a possibilidade de se conferir tal condição aos robôs, tornando-os pessoas perante a lei.[2] A noção jurídica de personalidade não se identifica necessariamente com a ideia de humanidade, sendo antes um meio de imputação de direitos e deveres em determinada sociedade, tais como o direito de contratar, de ter propriedade e de processar e ser processado.[3]

Atualmente, cogitar da atribuição de personalidade eletrônica a robôs no Brasil pode soar como pura utopia. A aparente ficção, todavia, poderá ganhar contornos reais: afinal, a matéria enfrenta calorosas discussões na União Europeia,[4] e o precedente árabe é o indicativo mais eloquente de que é necessário refletir sobre o tema. O fato de uma nação soberana dotar uma máquina do status de cidadã demanda a releitura crítica e conceitual de um sem número de categorias jurídicas, particularmente nos domínios do Direito Civil.

Reconhecida a viabilidade da eventual concessão de personalidade a seres robóticos dotados de inteligência artificial, cabe averiguar, particularmente, se às pessoas eletrônicas (ou a seus fabricantes) cumpriria imputar responsabilidade civil por danos por ela causados a terceiros. A questão, aliás, não é despicienda: se a decorrência da imputação de personalidade a determinado ente implica a assunção de direitos e deveres, é preciso identificar se as pessoas eletrônicas devem responder pelos próprios atos.

No tocante à responsabilidade civil do fabricante do robô, esta é a hipótese que se manifestaria mais viável no Brasil, de acordo com o teor do art. 931 do Código Civil: “ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação”. Eis o estado da arte em nosso sistema normativo: máquinas são bens, meros produtos. Uma vez comercializados tais produtos, imputa-se responsabilidade objetiva às pessoas e entidades que os façam circular em sociedade, tratando-se, aí, de se impor o dever de reparar danos que decorram do risco do empreendimento.

Afirmar que máquinas, ao menos em princípio, são consideradas meros produtos implica a incidência do regime do Código de Defesa do Consumidor, que define, em seu art. 3º, § 1°, que “produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial”. E, de todo modo, a aplicação das regras contidas no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor induzem idêntica solução: a responsabilidade – independentemente de verificação de culpa ou dolo – do indivíduo ou da entidade que criar e fazer circular robôs automatizados. Tal modelo de responsabilidade, a propósito, assenta suas raízes também no texto do parágrafo único do art. 927 do Código Civil, a prescrever o dever de reparar danos, independentemente de culpa, nos casos em que a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. Este será, sem dúvida, o caso das empresas que fabricam máquinas inteligentes; afinal, o risco de haver danos é intrínseco à própria inteligência artificial, eis que a habilidade de treinar a si mesma e acumular experiências lhe permite “tomar decisões independentemente da vontade do seu desenvolvedor e, inclusive, chegar a resultados sequer passíveis de previsão pelos seus programadores”.[5]

Já a eventual imputação de responsabilidade diretamente às próprias máquinas tem como premissa o reconhecimento de sua personalidade jurídica, circunstância que exige, naturalmente, intervenção legislativa neste sentido. A atribuição da condição de pessoa implicará então a possibilidade de as máquinas virem a responder por atos próprios.

A potencial imputação de responsabilidade civil às máquinas inteligentes tem seu estudo devidamente densificado por Henrique Sousa Antunes,[6] que cuida de problematizar dois aspectos cruciais concernentes ao tema: i) segundo o autor, os robôs carecem de imputabilidade, pois são incapazes de proceder a um juízo preliminar de censurabilidade do comportamento lesivo, eis que as ações e reações que movem seus comportamentos são programadas e, portanto, mecânicas e involuntárias, faltando ao robô uma consciência de si próprio e da relação com os outros; ii) caberia estabelecer qual arquétipo de responsabilidade civil seria aplicável aos robôs, pois a opção por uma responsabilidade subjetiva, esbarraria na enorme dificuldade de se aferir um juízo de culpa se o robô se apresentar despido da dimensão ética da ação humana. Para além disso, é delicada a tarefa de apurar a presença de imprudência, negligência ou imperícia no comportamento próprio de uma máquina programada para certos fins.

Por fim, seria crucial exigir a contratação, por parte dos produtores ou proprietários de robôs inteligentes, de um seguro obrigatório de responsabilidade civil, que possa garantir à sociedade que todo e qualquer ato lesivo praticado por uma máquina será devidamente amparado. Esta medida não convém apenas à sociedade, que terá em se favor um instrumento de satisfação de eventuais danos, mas também aos próprios fabricantes, que se verão libertos da responsabilidade por danos.

 

Adriano Marteleto Godinho
é professor da Universidade Federal da Paraíba.
Pós-doutorando em Direito Civil pela Universidade de Coimbra.
Doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa.
Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais.
 
Referências
ANTUNES, Henrique Sousa. Inteligência artificial e responsabilidade civil: enquadramento. In: Revista de Direito da Responsabilidade, a. 1, Coimbra, 2019, p. 139-154.
GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo curso de direito civil: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2003.
GOLDFEDER, Mark; RAZIN; Yosef. Robotic marriage and the Law. J. Law & Society Deviance, 2015.
PIRES, Thatiane Cristina Fontão; SILVA, Rafael Peteffi da. A responsabilidade civil pelos atos autônomos da inteligência artificial: notas iniciais sobre a resolução do Parlamento Europeu. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 7, n. 3, 2017, p. 238-254.
[1] GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo curso de direito civil: parte geral, v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 88.
[2] GOLDFEDER, Mark; RAZIN; Yosef. Robotic marriage and the Law. J. Law & Society Deviance, 2015, p. 144.
[3] GOLDFEDER, Mark; RAZIN; Yosef. Robotic marriage and the Law. J. Law & Society Deviance, 2015, p. 140.
[4] O Parlamento Europeu editou recentemente o Relatório 2020-2014, que versa sobre a possível responsabilização para casos de inteligência artificial. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/A-9-2020-0178_PT.pdf. Acesso em 03 de fevereiro de 2021.
[5] PIRES, Thatiane Cristina Fontão; SILVA, Rafael Peteffi da. A responsabilidade civil pelos atos autônomos da inteligência artificial: notas iniciais sobre a resolução do Parlamento Europeu. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 7, n. 3, 2017, p. 243.
[6] ANTUNES, Henrique Sousa. Inteligência artificial e responsabilidade civil: enquadramento. In: Revista de Direito da Responsabilidade, a. 1, Coimbra, 2019, p. 139-154.

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